Do desamor ao multiamor
“Eu sem você sou só desamor”, já dizia Vinícius de Morais em uma de suas canções. Mas o termo é tomado aqui com outro sentido: “des” de descentralização do amor na instituição da família enquanto casal monogâmico, apenas. “Des” de desprezo e da repressão do nosso próprio desejo de formar relações afetivas entre mais de uma pessoa. É o desamor vindo à luz.
Descentralização poliamorosa
Segundo a publicação americana Medical Daily, hoje, nos Estados Unidos, já há meio milhão de pessoas que estão em relações poliamorosas, aquelas que contemplam mais de uma família na mesma relação, tudo com consentimento e aceitação dos demais parceiros.
Na Califórnia, duas das maiores comunidades poliafetivas estão na Bay Area e no Silicon Valley. Lá ocorre anualmente a conferência internacional do futuro da monogamia e da não-monogamia, e este foi o quarto ano consecutivo a receber o evento, organizado pelo poliamoroso Dr. Dave Doleshal. Além das palestras relacionadas aos estudos psicológicos e sociológicos sobre o tema, pela primeira vez ocorreram seminários relacionados ao folclore e à mitologia, e uma mostra de objetos de arte que retratava relações consensuais não monogâmicas. Assim como essa conferência, vários outros eventos da comunidade “poli” podem ser encontrados no Polyamory Meetups.
Diversos grupos em redes sociais e sites como o Poly Matchmaker, que tem uma rede ativa com mais de 41 mil usuários, também ajudam a representar o crescimento desses grupos. Em uma plataforma de financiamento coletivo, por exemplo, a produtora Polyamory Productions arrecadou, no final do ano passado, mais de 27 mil dólares para produzir o filme “Twice”, sobre poliamor.
No Brasil, ainda não há números consensuais sobre a população poliamorosa, mas já vemos algumas iniciativas surgindo: o advogado Rafael da Silva Santiago recentemente publicou no livro “Poliamor e direito das famílias” sua tese de mestrado que defende a legalização não “da família”, mas “das famílias”, reconhecendo o núcleo familiar poliafetivo.
De acordo com a advogada de família Juliana Ribeiro Ugolini de Britto, “temos hoje, mesmo que com alguma resistência mais conservadora, um Direito Civil que consegue alcançar o valor jurídico do afeto como princípio basilar e que, com isso, pode abarcar as mais diversas configurações familiares existentes, de forma a garantir a dignidade humana dos indivíduos de suas composições.”
O documentário brasileiro “Poliamor”, disponível no YouTube, já tem mais de 187 mil visualizações. O curta-metragem de quinze minutos, dirigido por José Agripino, foi produzido a partir de relatos de homens e mulheres de diferentes idades que vivem relações poliamorosas e contam as dificuldades e alegrias de se relacionar afetivamente com mais de uma pessoa.
Millennials rumo ao multiamor
A maneira como nossa cultura define as relações convencionais se expandiu. Jovens com menos de trinta anos cresceram em uma sociedade em que o divórcio é comum e as famílias mosaico são uma realidade. Esse cenário oferece mais possibilidades para os jovens testarem diferentes tipos de relacionamentos, seja um ménage a tròis ou morar junto antes de casar. Ou seja, as relações são mais flexíveis, negociáveis e líquidas: poliamor é mais sobre compreender o espaço um do outro do que sobre sexo.
Para esses que já nasceram sabendo que relações monogâmicas nem sempre dão certo e que as pessoas traem, é normal conversar e testar relações não monogâmicas. Em uma entrevista para a revista Cosmopolitan, uma menina poliamorosa de 24 anos confirma esse comportamento: “(…) Fui criada por pais ativistas e marxistas, e aprendi a questionar a instituição do casamento desde cedo. Embora seja influenciada pelas hierarquias tanto quanto outras pessoas, também sempre questionei muito a ideia de uma única alma gêmea. Eu só queria ter mais possibilidades que isso.”
Não à toa, o maior público apreciador da turnê de lançamento do livro “More than two: a practical guide to etichal polyamory”, de Franklin Veaux e Eve Rickert, foram pessoas de vinte a quarenta anos de idade. Afinal, para eles a relação “poli” é apenas mais um tipo de opção dentre tantas outras.
Na televisão, a novidade é a participação de uma modelo holandesa no Big Brother 2015 na Inglaterra que faz parte da geração dos Millenials e assumiu publicamente ser uma mulher poliamorosa.
Desprezo do diferente e do próprio desejo
Hoje “poly is the new orange”: rompe a barreira da nossa cultura tradicional, que define que o amor deve ser exclusivo de uma pessoa para com a outra, sem a possibilidade de poder amar e se relacionar, ao mesmo tempo, com uma terceira ou quarta pessoa.
O conceito da relação poliafetiva atinge nossos valores morais. Vai contra (ou justamente de encontro) aos nossos desejos mais profundos. E, por isso, pode assustar e ser reprimido.
Em 2013, a Coalisão Nacional de Liberdade Sexual dos EUA conduziu uma pesquisa com quatro mil pessoas que se autodefiniam poliamorosas, e identificou que quase 30% delas sofrem algum tipo de discriminação social por causa do tipo de relação que escolheram ter.
O aplicativo The Poly Life, que ajuda famílias “poli” a organizarem seus compromissos com agendas, chats e mapas, foi desenvolvido a partir da solicitação de uma família que ia participar de uma nova mini-série americana sobre relações poliafetivas, mas por receio de se exporem na mídia que não é receptiva, preferiram ficar no backstage.
Já em sua segunda temporada nos Estados Unidos, a série “Polyamory: Married & Dating” se passa na Califórnia e retrata o cotidiano, amores e conflitos de duas famílias poliamorosas.
No universo dos Games ainda não existe a possibilidade de criar relações poliafetivas virtuais. Mas em breve esse cenário irá mudar: no seminário “Creating Romances in Games”, que ocorreu em meados de 2014 na cidade de São Francisco, desenvolvedores da BioWare — dos famosos Mass Effect and Dragon Age — disseram que estão trabalhando em novas tecnologias para inserir opções de relacionamentos poliamorosos em seus jogos.
Evidências não faltam de que são crescentes as pessoas e iniciativas que envolvem relações não monogâmicas, multi-amorosas. A sociedade vai aceitar esse conceito de amor aberto?
“Eu sem você sou só desamor”, já dizia Vinícius de Morais em uma de suas canções. Mas o termo é tomado aqui com outro sentido: “des” de descentralização do amor na instituição da família enquanto casal monogâmico, apenas. “Des” de desprezo e da repressão do nosso próprio desejo de formar relações afetivas entre mais de uma pessoa. É o desamor vindo à luz.
A maneira como nossa cultura define as relações convencionais se expandiu. Jovens com menos de trinta anos cresceram em uma sociedade em que o divórcio é comum e as famílias mosaico são uma realidade. Esse cenário oferece mais possibilidades para os jovens testarem diferentes tipos de relacionamentos, seja um ménage a tròis ou morar junto antes de casar. Ou seja, as relações são mais flexíveis, negociáveis e líquidas: poliamor é mais sobre compreender o espaço um do outro do que sobre sexo.
Hoje “poly is the new orange”: rompe a barreira da nossa cultura tradicional, que define que o amor deve ser exclusivo de uma pessoa para com a outra, sem a possibilidade de poder amar e se relacionar, ao mesmo tempo, com uma terceira ou quarta pessoa.
O conceito da relação poliafetiva atinge nossos valores morais. Vai contra (ou justamente de encontro) aos nossos desejos mais profundos. E, por isso, pode assustar e ser reprimido.
Evidências não faltam de que são crescentes as pessoas e iniciativas que envolvem relações não-monogâmicas, multi-amorosas. A sociedade vai aceitar esse conceito de amor aberto?
Comente