A lógica do descarte desafiada pela indústria de eletrônicos
Quando o primeiro iPhone foi apresentado, em 2007, Steve Jobs disse que “de vez em quando, um produto revolucionário chega e muda tudo”. Talvez o iPhone tenha sido isso, o ponto de mudança na maneira como passamos a nos relacionar com os celulares — uma relação que se tornou mais próxima e funcional. Mas a revolução, doze versões depois, parece ser um espectro. Questionamentos sobre a relevância dos produtos e sobre a velocidade com que eles são apresentados fizeram a Apple deslocar-se no conceito do público: de arauto da revolução a artista da obsolescência programada, aquela ideia que nos lembra que a novidade não é bem novidade, mas um expediente para nos levar às lojas.
A Apple insere-se num contexto, é verdade. Costumamos trocar nossos dispositivos eletrônicos (celulares, sobretudo) a cada dois, três anos. Os padrões criados pelas empresas de tecnologia mudam o tempo todo. Os formatos de arquivo tornam-se incompatíveis, cabos e conectores mudam de formato, sistemas operacionais tornam-se lentos. E, então, compramos. Mas a questão não é apenas financeira. Em 2014, por exemplo, o número de celulares em uso no mundo chegou a 7,2 bilhões de unidades e ultrapassou o número de habitantes. Como boa parte deles tende a parar no lixo rapidamente, o volume de resíduos tornou-se um problema enorme. Além disso, estima-se que a fabricação de um único smartphone exija a extração de cerca de 400 quilos de recursos naturais, desde água até metais como chumbo.
Se temos tanto a perder com o curto prazo com que fabricamos/trocamos dispositivos eletrônicos, não é difícil entender a onda de pessoas que questionam a validade desse ciclo acelerado de produção e consumo. Consumidores que se organizam politicamente, como o Movimento Sem Obsolescência Programada (SOP), sediado na Espanha, ou que manifestam-se em redes sociais, como aqueles que submetem a cada lançamento da Apple. Sim, empresas ainda se sustentam através da noção de que mais produção gera mais consumo e mais lucro. E, sim, o consumo é uma via de mão dupla, em que trafegam indústria e cliente. Mas, dada a noção de consumo consciente que emerge em nossa sociedade, a tendência é que os produtos admiráveis — ou revolucionários — do futuro próximo sejam aqueles capazes de traduzir nosso desejo por objetos duráveis, capazes de desafiar a lógica do descarte.
O gadget de hoje e de sempre
Não se trata de oferecer uma nota de garantia estendida ou um selo verde, mas de oferecer produtos que tenham em seu éthos a própria revisão de um modelo de crescimento econômico produtivista-consumista. Como? Desde o ano passado, o Google vem trabalhando no Projeto Ara, cuja ideia é criar um smartphone dividido em partes (módulos) que o consumidor pode trocar de acordo com a sua necessidade — se eu quero uma câmera melhor, não preciso pagar o preço (financeiro e ambiental) de um aparelho completamente novo, mas apenas trocar o módulo referente à câmera. Com a troca de um módulo agora e outro mais tarde, será possível manter o aparelho sempre atualizado e personalizado. O gadget perfeito de hoje pode sempre renascer como o gadget perfeito amanhã.
Nesta linha, batizada de tecnologia modular, as peças são cambiáveis e pode-se melhorar o desempenho sem precisar trocar o aparelho inteiro. O relógio Blocks Wearables, criado por uma startup homônima, é outro exemplo. Alireza Tahmasebzadeh, co-criador do relógio, durante a apresentação do produto, disse:
“Neste momento, a tecnologia está nos controlando. Essa equação precisa ser inversa”
No site do Block Wearables, lê-se: “Estamos redefinindo a forma como a tecnologia é construída, através da criação de uma plataforma que irá manter o seu dispositivo à prova do futuro”. A mensagem de aparelhos modulares é: ao comprar um dispositivo, você pode usá-lo para sempre.
Uma ideia “brilhante”
Sabemos que poucas indústrias são tão hábeis em fomentar um padrão de consumo constante quanto a de eletrônicos. Mas é interessante perceber que, justamente neste segmento, ocorrem esforços preciosos para barrar a lógica da obsolescência programada. Esforços que não estão desvinculados das preocupações com o mercado.
Pelo contrário: nenhuma empresa sobrevive descolada das aspirações de uma época.
Nenhuma ação de branding é mais eficaz do que afinar a marca com as necessidades da sociedade. A busca do Google pelo Ara é a busca do barco pelo sentido do vento.
Trata-se de um vento já percebido pela holandesa Philips. A empresa, ao notar o coro formado por governos e consumidores contra lâmpadas incandescentes, poluentes e intensivas no consumo de energia, passou a ampliar a produção de lâmpadas econômicas LED, que duram 25 vezes mais. As demais empresas do setor seguiram o caminho. E, claro, a transição para a era do consumo durável exigiu uma mudança no modelo de negócios: metade da receita das fabricantes de lâmpadas não vem mais da venda do produto em si, mas da oferta de serviços para clientes corporativos e governos. As empresas se responsabilizam pela instalação, pela troca das lâmpadas e pelo acompanhamento do gasto de energia por determinado período: o que se vende é a gestão da iluminação.
Uma curiosidade: a ideia de programar a obsolescência de um objeto começou com as lâmpadas. Na década de 1920, um cartel que reunia fabricantes de todo o mundo decidiu diminuir a durabilidade de seus produtos de 2,5 mil horas de uso para apenas mil. A intenção era forçar pessoas a comprar o triplo de quantidade de lâmpadas para suprir a mesma necessidade de luz. Quase cem anos depois, a ideia “brilhante” nos leva numa direção oposta…
O lucro real
Diminuir o montante de produtos vendidos e investir em produtos concebidos para durar são práticas que levam as empresas a uma guinada na forma de pensar o lucro. Uma tarefa árdua, mas também uma vitória a longo prazo. Como escreveu o consultor americano Andrew Winston, a verdadeira questão não é se as empresas vão assumir missões sustentáveis, mas o quão rápido elas podem mudar suas estratégias e táticas para, de forma rentável, se sobressair na resolução dos grandes desafios da humanidade.
Por outro lado, a obsolescência dos produtos pode vir na forma física (produtos programados para não durar), mas também na forma psicológica em que um consumidor voluntariamente substitui algo que ainda funciona só para ter o último modelo. Os movimentos das companhias na direção do consumo durável continuarão acanhados se os consumidores não derem sinais ainda mais claros de que desejam que os padrões de produção sejam mudados. Novamente, o consumo é uma via de mão dupla.
Talvez a maioria de nós ainda esteja num momento de encantamento com o objeto — faz pouco tempo que aprendemos a manejá-lo, queremos desfrutar da novidade e a compra é encarada como uma forma de fruição. Mas o coro dos que compreenderam que o nosso ritmo de consumo é autodestrutivo e que nós não somos aquilo que possuímos já soa como um prenúncio do futuro. Parafraseando Steve Jobs,
“de vez em quando, uma nova consciência chega e muda tudo”.
Em 2014, por exemplo, o número de celulares em uso no mundo chegou a 7,2 bilhões de unidades e ultrapassou o número de habitantes. Como boa parte deles tende a parar no lixo rapidamente, o volume de resíduos tornou-se um problema enorme. Estima-se que a fabricação de um único smartphone exija a extração de cerca de 400 quilos de recursos naturais, de metais como chumbo a água.
Se temos tanto a perder com o curto prazo com qual fabricamos/trocamos dispositivos eletrônicos, não é difícil entender a onda de pessoas que questionam a validade desse ciclo acelerado de produção e consumo.
Dada a noção de consumo consciente que emerge em nossa sociedade, a tendência é que os produtos admiráveis — ou revolucionários — do futuro próximo serão aqueles capazes de traduzir nosso desejo por objetos duráveis, capazes de desafiar a lógica do descarte.
A tecnologia modular propõe gadgets com peças cambiáveis, permitindo melhorar o desempenho sem precisar trocar o aparelho. Sabemos que poucas indústrias são tão hábeis em fomentar um padrão de consumo constante quanto a de eletrônicos. Mas é interessante perceber que, justamente neste segmento, ocorrem esforços preciosos para barrar a lógica da obsolescência programada.
Por outro lado, a obsolescência dos produtos pode vir na forma física (produtos programados para não durar), mas também na forma psicológica em que um consumidor voluntariamente substitui algo que ainda funciona só para ter o último modelo. Os movimentos das companhias na direção do consumo durável continuarão acanhados se os consumidores não derem sinais ainda mais claros de que desejam que os padrões de produção sejam mudados.
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