Cinema como perpetuação da mentalidade consumista

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Por trás do som e da imagem, revela-se uma indústria e um comportamento profundamente atrelados aos excessos do mercado

por Conrado Giannetti capa Kaupo Kikkas

Dentre as expressões artísticas, o cinema é das mais próximas do olho do furacão da Era Digital. Tudo, de como se faz a como se assiste a um filme, tem se transformado numa velocidade incessante. Só de uns anos pra cá, estamos vendo o fim das locadoras, o fim da película e o início dos sites de streaming. E questionam se o fim das salas não está na fila.

Estas mudanças em curso estão movimentando a indústria hollywoodiana, as novas redes de distribuição, os realizadores independentes e também nós, os espectadores. Em meio à disputa deles por atenção e a nossa busca por entretenimento, encontram-se desdobramentos intimamente ligados ao consumismo.

A sétima arte tem sete vidas

Rialto Theatre

Os números de bilheteria têm assustado os executivos de Hollywood. Tanto que, nos últimos anos, desencavaram o cinema 3D e lançaram as salas Imax, na tentativa de atrair público e garantir que os filmes não sejam assistidos em telas de TV ou computador. Mas essa não é a primeira vez que a indústria cinematográfica se vê em apuros. E, quando se vê, não se limita a fazer uso de avanços técnicos: a temática dos filmes ora é campo de novas experiências, ora de velhas fórmulas.

The Girl Can’t Help It (1956), por exemplo, explorou tanto cores e tamanho de tela, quanto o rock de Little Richard e o corpo de Jayne Mansfield para tirar o público da frente da recém-chegada televisão a cores.

Em 2013, Steven Soderbergh contou em uma ter ficado assustado com a maneira que um homem via filmes ao seu lado em um avião: o passageiro pulava a história e ia direto para as cenas de ação. Partindo daí, o cineasta conta o que tem presenciado nos seus dias de trabalho:

“Há cada vez menos executivos que amam filmes, há cada vez menos executivos que conhecem cinema.”

O relato de Soderbergh sobre o espectador impaciente serve como pano de fundo para ele descrever como as pesquisas de público e os altos custos de operação têm levado Hollywood a arriscar menos e apostar em sequências, remakes e adaptações.

Ele explica a atual economia do cinema: como 50% da arrecadação de um blockbuster americano vem do mercado internacional, produtores têm procurado simplificar as histórias e excluir ambiguidades, na lógica do quanto mais raso, mais universal.

Resumindo: o cinema é realizado em escala industrial, apontado para as massas, projetado como consumo padronizado e descartável. Até onde irá essa indústria para segurar seus lucros? Até onde vão as similaridades de um filme com uma peça de fast fashion?

Quando o trailer é melhor que o filme

Rick Finkelstein
Rick Finkelstein

Se é esse o estado do cinema dentro das salas de reunião de Los Angeles, ele não se formou sozinho. Aqui desse lado, dentro dos shoppings e das casas, essa realidade ganha ressonância.

Em 2013, Clay Johnson lançou The Information Diet, um livro que levanta a bandeira do consumo mais consciente de informação. Johnson diz que, frente aos excessos de estímulo que percorrem nossa rotina, devemos selecionar melhor ao que vamos nos expôr.

A ligação com a situação do cinema é automática. O excesso de títulos lançados e a rapidez do rodízio nas salas empurra os espectadores e a própria mídia a não terem tempo suficiente sequer para digerir os significados da história, pois o próximo imperdível já entra em cartaz.

A velocidade do mundo baseado no consumo é descrita por Jonathan Crary no livro Capitalismo Tardio e os Fins do Sono, de 2014. Palavras que facilmente remetem ao fã de cinema testemunhado por Soderbergh no avião:

“O único fator consistente dessa sucessão de produtos de consumo e serviços, é a crescente integração de nosso tempo e de nossa atividade aos parâmetros de intercâmbio eletrônico. Gastam-se bilhões de dólares em pesquisas dedicadas a reduzir o tempo de tomadas de decisões, a eliminar o tempo inútil de reflexão e contemplação.”

Mais do que um plano de marketing forjado por executivos, os efeitos do consumismo cinematográfico fazem parte de um conjunto comportamental. Basta ver a facilidade com que adquirimos mais filmes do que somos capazes de assistir, seja comprando ou pirateando.

Basta ver como qualidade fica em segundo plano frente à quantidade quando assistimos em telas de celular filmes captados com câmeras avançadas.

Basta perceber como o ritual da sala escura, da total imersão, do espetáculo em comunidade, vive uma crise.

Estado X Potencial

Apesar de ainda não ter sido mencionada, a produção nacional sofre destes mesmos paradigmas. Além de termos nossas salas praticamente dominadas pelos filmes americanos, a bilheteria dos filmes brasileiros que mais arrecadaram em 2015 mostra que aqui os produtores têm se agarrado às histórias de humor escrachado.

Os 15 filmes acima somaram 18 milhões de espectadores. Os outros 111 filmes nacionais lançados em 2015 somaram juntos 1 milhão de espectadores.
Os 15 filmes acima somaram 18 milhões de espectadores. Os outros 111 filmes nacionais lançados em 2015 somaram juntos 1 milhão de espectadores.

A tomada de consciência da mentalidade consumista já dá fruto a alternativas: a valorização da produção local, a aceitação de múltiplas identidades, a economia colaborativa. Mas como isso se aplica ao cinema?

É verdade que a digitalização abriu novos canais e possibilidades, mas, ainda assim, somos impelidos a assistir os mesmos filmes ou então as séries de TV e do NetFlix (as quais, apesar de apresentarem um conteúdo mais diverso e profundo, não estão sendo assistidas com a mesma intensidade consumista?).

Discutir as direções que o cinema tem tomado não é saudosismo com o formato da sala escura. É questionar o que poderia ser usufruído da experiência cinematográfica caso o retorno financeiro não fosse prioridade e caso nossa jornada frente à tela (seja telona ou telinha) ultrapassasse a lógica do consumo.
Barry Underwood
Barry Underwood

No texto Utopian Film, Alain de Botton cita a Antiguidade para apontar o potencial do cinema:

“Foram os Gregos quem trouxeram maturidade ao antecessor do cinema: o teatro. De modo fascinante, eles não iam ao teatro em busca de entretenimento e pronto. Eles pensaram profundamente sobre as motivações de assistir uma peça e concluíram que deveria ser uma therapeía, um recurso que nos ajuda a sermos pessoas melhores, mais sábias e maduras. Pertencia, junto à religião e à filosofia, às forças capazes de desenvolver nossas almas.”

Odeon: o "NetFlix argentino" só apresenta produções do país, dando visibilidade, espaço e sobre-vida aos filmes.
Odeon: o “NetFlix argentino” só apresenta produções do país, dando visibilidade, espaço e sobre-vida aos filmes.
Castro Theatre é um cinema de San Francisco que, em vez de priorizar lançamentos, volta-se para filmes fora do circuito e sessões especiais, como os musicais em que o público é convidado a cantar junto com os personagens.
Castro Theatre é um cinema de San Francisco que, em vez de priorizar lançamentos, volta-se para filmes fora do circuito e sessões especiais, como os musicais em que o público é convidado a cantar junto com os personagens.

A realidade é que o presente tem potencial para experimentações criativas e arriscadas. A multiplicidade de caminhos disponíveis se vê em três filmes marcantes e recentes: o Tangerine de Sean Baker foi inteiramente filmado com câmeras de celular, o Hateful Eight de Quentin Tarantino foi realizado no antigo formato 70mm e o Love de Gaspar Noé colocou o 3D a serviço de uma viagem amorosa e lisérgica.

Tangerine, Hateful Eight, Love
Tangerine, Hateful Eight, Love

A mentalidade consumista está introjetada a ponto de às vezes se apresentar apenas como o natural. Nem sempre é fácil perceber como assistir, ou não, a um filme é um ato profundamente conectado com as emergências do mundo atual.

Versão resumida ×

Em 2013, Steven Soderbergh contou em uma ter ficado assustado com a maneira que um homem via filmes ao seu lado em um avião: o passageiro pulava a história e ia direto para as cenas de ação. O relato serve como pano de fundo para ele descrever como as pesquisas de público e os altos custos de operação têm levado Hollywood a arriscar menos e apostar em sequências, remakes e adaptações. Ele explica a atual economia do cinema: como 50% da arrecadação de um blockbuster americano vem do mercado internacional, produtores têm procurado simplificar as histórias e excluir ambiguidades, na lógica do quanto mais raso, mais universal.

O cinema é realizado em escala industrial, apontado para as massas, projetado como consumo padronizado e descartável. Até onde irá essa indústria para segurar seus lucros? Até onde vão as similaridades de um filme com uma peça de fast fashion? O excesso de títulos lançados e a rapidez do rodízio nas salas empurra os espectadores e a própria mídia a não terem tempo suficiente sequer para digerir os significados da história, pois o próximo imperdível já entra em cartaz.

É verdade que a digitalização abriu novos canais e possibilidades, mas, ainda assim, somos impelidos a assistir os mesmos filmes ou então as séries de TV e do NetFlix (as quais, apesar de apresentarem um conteúdo mais diverso e profundo, não estão sendo assistidas com a mesma intensidade consumista?). Nem sempre é fácil perceber como assistir, ou não, a um filme é um ato profundamente conectado com as emergências do mundo atual.

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Vá Além

The Criterion Collection

Como uma alternativa à fixação pelo novo em detrimento do bom, The Criterion Collection é uma empresa que lança, desde 1984, importantes filmes clássicos e contemporâneos para o mercado doméstico. Seu catálogo de títulos é reconhecido por preservar raras edições e bônus.

Ismail Xavier

Um dos mais proeminentes pensadores do cinema nacional e internacional, Ismail Xavier tem dezenas de livros lançados sobre o assunto, que colaboram para uma visão mais rica e abrangente da experiência cinematográfica. Nesta entrevista, Xavier comenta sobre a “Teoria do Dispositivo”, a qual reflete sobre os efeitos da nossa mente incessantemente distraída e conectada.

Every Frame a Painting

Todo filme opera sob certas regras e padrões. E estes estão presentes até mesmo em uma cena de luta do Jackie Chan ou em uma discussão entre o Patolino e o Pernalonga. Tony Zhou é um editor que mantém um canal no YouTube em que ele disseca a linguagem cinematográfica e, em efeito contrário, confere ainda mais encantamento ao nos revelar o truque da mágica.

Peter Greenaway

Em 2012, o cineasta Peter Greenaway deu uma palestra no Fronteiras do Pensamento com o nome “O cinema está morto. Vida longa ao cinema”. Com formação em artes plásticas e conhecido por realizar filmes experimentais, Greenaway defende que ainda não assistimos a um filme, o que estamos acostumados a assistir são textos filmados.

Slavoj Zizek

Fora os livros, o amor do filósofo esloveno pelo cinema já rendeu dois documentários: The Pervert’s Guide to Cinema (2006) e The Pervert’s Guide to Ideology (2012). Neles, o próprio Zizek nos guia pelos cenários de filmes-símbolos da cultura pop para desvendar as relações de classe e os significados psicoanalíticos que ele enxerga nas cenas.

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