Comunicação e igualdade de gênero: além da estratégia publicitária
É inevitável. O nosso dinheiro — pouco ou muito — está por aí, em circulação, financiando coisas e mais coisas o tempo todo. A partir de cada escolha de compra, um universo inteiro é alimentado. Trabalho escravo e catástrofes ambientais ou, no caminho inverso, responsabilidade social, desenvolvimento local e cuidado com a comunidade de entorno.
Há algum tempo, e principalmente para as mulheres, igualdade de gênero se somou à lista de questões socialmente relevantes para serem observadas com cuidado na hora de escolher uma marca.
O assunto explodiu nos últimos dois anos no Brasil — com a Internet e vários movimentos de empoderamento feminino. A partir daí, muitas mulheres começaram a se movimentar de forma ampla em torno do assunto. Elas deixam bem claro que estão despertando um olhar mais consciente e curioso sobre as condições da mulher. Não à toa essa movimentação tem mexido bastante com as escolhas de compra delas.
Machismo não passará
Campanhas sexistas têm sido alvo constante de denúncias e maculado a imagem de marcas tradicionais. Elas geralmente são focadas em um público masculino, , fazem apologia ao assédio e ao estupro e trabalham com estereótipos de gênero grotescos na tentativa de gerar humor e identificação do público. Aparece com frequência a figura da gostosa, da mulher burra, submissa ou incapaz de fazer escolhas por si só.
Apesar de ser um apelo comum no universo da moda, é o caso de muitas outras marcas conectadas ao mundo masculino: cerveja, perfumes, alimentos, entre outras.
Cada vez mais essas campanhas sofrem linchamentos nas redes sociais, o que muitas vezes provoca a retirada de circulação da propaganda. É um alerta de que as mulheres estão acordando com força.
Estereótipos de gênero
Em 2013, um estudo apontou que 65% das mulheres não se identificavam com a forma como eram retratadas pela publicidade. Isso porque muitas campanhas fazem uso de estereótipos de gênero nocivos às mulheres, que podem passar despercebidos porque já estão normalizados socialmente. A mulher ruim no volante, a que só se interessa em compras e coisas supérfluas, a heterossexual cisgênera que faz tudo por um homem e outras caricaturas reforçam prisões femininas e perpetuam desigualdade.
A campanha “Trânsito + gentil” da Porto Seguro, por exemplo, reforça o dito “mulher no volante, perigo constante”, que permeia nossa cultura e prejudica as mulheres.
Um olhar mais apurado é muito importante se quisermos falar de marcas realmente comprometidas em beneficiar as mulheres e contribuir para um mundo de mais igualdade entre os gêneros. Tudo importa: a quantidade de mulheres representando papéis relevantes, como aparecem vestidas, que profissões desempenham (imperam mães e profissões de cuidado, como professoras e enfermeiras em vez de cientistas e escritoras), em que cenário e contexto são colocadas (compras e fofocas com as amigas, por exemplo), como são relacionadas às figuras masculinas (sempre as namoradas e esposas girando em torno dos homens), etc.
Estes pontos são importantes e delicados, porque definem cultura e educam gerações inteiras de modo bastante silencioso, reproduzindo muitas vezes um contexto social gerador de disparidade entre homens e mulheres.
Representatividade e padrões de beleza
Também é importante olhar para a quantidade e tipo de mulheres que estão na mídia, por um recorte de diversidade. Na mídia sempre ganham destaque as mulheres dentro de certos padrões estéticos (magra, branca, de cabelos lisos). A diversidade racial e de corpos raramente é representada sob uma perspectiva real: a mulher negra não é tão negra e a mulher gorda é, na verdade, uma moça ligeiramente fora do padrão das revistas femininas.
Normalmente, o que vemos nas telas e páginas de revista são também mulheres jovens. Uma pesquisa mostrou que, nos Estados Unidos, 71% das mulheres representadas na TV têm entre 20 e 30 anos, mas elas são só 39% da população. Enquanto isso, apenas 26% das mulheres representadas na mídia tem 40 anos ou mais — e elas são 47% da população.
“O sistema patriarcal, o sistema dominado por homens, valoriza as mulheres por serem reprodutoras e ponto. Então, o valor delas está limitado ao tempo em que elas são sexualmente ativas, férteis. Elas perdem muito valor [social] depois disso. É como se chegassem aos 39 e depois precisassem desaparecer.” — Gloria Steinem, jornalista e ativista do movimento feminista, no documentário Miss Representation
Crescemos vendo nas propagandas mulheres que representam uma pequeníssima parcela das mulheres reais, o que fomenta a perseguição a um ideal de beleza inalcançável.
Empoderar não é mudar de estereótipo
Um erro frequentemente cometido pelas marcas ao tentar renovar o olhar para a mulher é trocar um estereótipo antigo por um outro, mais moderno. Se antes os estereótipos giravam em torno de ter o corpo perfeito, um ótimo parceiro e uma bela família, hoje a “nova mulher” é poderosa, bem-sucedida, forte e inteligente.
As prisões mudam de aparência, mas seguem ali, se acumulando numa lista sem fim de coisas que as mulheres devem fazer para serem boas o suficiente.
Muitas vezes, também, empoderamento e sucesso são traduzidos como a simples inversão de papéis tradicionais na família, ou associação de características entendidas como masculinas às mulheres (como poder, dinheiro, altos cargos, força etc.).
Propaganda de 2011 do Fiat Idea
Não é isso que buscamos quando falamos em empoderamento feminino. O assunto é bem mais complexo e envolve estruturas sociais profundas.
As marcas precisam ajudar a libertar as mulheres sem criar novos conceitos de mulheres-modelo, que não contribuem em nada para alcançarmos igualdade de gênero.
Não basta falar em ‘empoderar’ para vender
Estamos sofrendo o impacto de catástrofes naturais e sociais ligadas à exploração irresponsável dos recursos naturais. Nesse contexto mais amplo, fazer melhores opções de consumo é uma pauta tão urgente para as mulheres quanto as diferenças entre gêneros.
Por uma perspectiva mais específica, é importante lembrar que, como consequência do processo de empoderamento, as mulheres desenvolveram um olhar mais cuidadoso e compassivo para a saúde e a própria aparência física. Essa jornada vai de encontro ao consumo exacerbado. Queremos, cada vez mais, nos livrar de produtos desnecessários ou nocivos, e isso passa por saber o que estamos comprando.
Antes, a ferramenta mais hábil das marcas era usar fraquezas das mulheres para vender para elas. Do mesmo jeito, usar empoderamento apenas como estratégia publicitária vazia fica bastante óbvio e pega mal. Cooptar a causa só para vender mais coisas das quais elas não precisam realmente, sem de fato ter uma proposta maior ou uma agenda útil ligada à igualdade de gênero, é reforçar o problema e não ajudar a solucioná-lo. É só um novo jeito de dizer que não somos suficientemente boas e precisamos mesmo é daquele produto ou do que ele traduz simbolicamente.
Boas práticas
Há marcas que apoiam movimentos amplos pela igualdade. É o caso da Boticário, que além de direcionar várias campanhas publicitárias para o assunto também financiou o documentário (vídeo abaixo) em parceria com a ONU Mulheres Brasil. Outro exemplo é a Avon, com a campanha #Belezaquefazsentido e o Instituto Avon, com vários movimentos como a campanha Fale sem medo, para combater a violência doméstica.
A ESPN lançou uma plataforma para estimular o esporte feminino brasileiro.
Igualdade de gênero dentro de casa
Muitas vezes as marcas só pensam em igualdade de gênero como tema a ser abordado numa campanha. Mas e da porta pra dentro? Quantos líderes daquela empresa são mulheres? Existem comitês para tratar de assuntos ligados à mulher e à igualdade de gênero? Há incentivo para contratação e promoção de mulheres? Integração das crianças à rotina de trabalho? Qual é a proporção de mulheres e homens?
Mais que boas campanhas, é muito melhor ver empresas que abraçam o assunto de um jeito verdadeiro, palpável, honesto.
Precisamos olhar para as questões de gênero com mais seriedade. De um lado, nós, mulheres, podemos, junto com a jornada de empoderamento, fazer melhores escolhas de consumo. Do outro, as marcas precisam usar seu potencial de alcance para de fato criar uma nova cultura de igualdade.
Há algum tempo, e principalmente para as mulheres, igualdade de gênero se somou à lista de questões socialmente relevantes para serem observadas com cuidado na hora de escolher uma marca.
Campanhas sexistas têm sido alvo constante de denúncias e maculado a imagem de marcas tradicionais. Elas geralmente são focadas em um público masculino, , fazem apologia ao assédio e ao estupro e trabalham com estereótipos de gênero grotescos na tentativa de gerar humor e identificação do público. Aparece com frequência a figura da gostosa, da mulher burra, submissa ou incapaz de fazer escolhas por si só.
Antes, a ferramenta mais hábil das marcas era usar fraquezas das mulheres para vender para elas. Do mesmo jeito, usar empoderamento apenas como estratégia publicitária vazia fica bastante óbvio e pega mal.
As marcas precisam ajudar a libertar as mulheres sem criar novos conceitos de mulheres-modelo, que não contribuem em nada para alcançarmos igualdade de gênero. Há marcas que apoiam movimentos amplos pela igualdade. Mais que boas campanhas, é muito melhor ver empresas que abraçam o assunto de um jeito verdadeiro, palpável, honesto.
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