Comunicação e igualdade de gênero: além da estratégia publicitária

/

Para ajudar a libertar as mulheres, marcas precisam abraçar a igualdade de gênero de um jeito verdadeiro, palpável e honesto.

por Anna Haddad capa Laura Redburn

É inevitável. O nosso dinheiro — pouco ou muito — está por aí, em circulação, financiando coisas e mais coisas o tempo todo. A partir de cada escolha de compra, um universo inteiro é alimentado. Trabalho escravo e catástrofes ambientais ou, no caminho inverso, responsabilidade social, desenvolvimento local e cuidado com a comunidade de entorno.

Há algum tempo, e principalmente para as mulheres, igualdade de gênero se somou à lista de questões socialmente relevantes para serem observadas com cuidado na hora de escolher uma marca.

O assunto explodiu nos últimos dois anos no Brasil — com a Internet e vários movimentos de empoderamento feminino. A partir daí, muitas mulheres começaram a se movimentar de forma ampla em torno do assunto. Elas deixam bem claro que estão despertando um olhar mais consciente e curioso sobre as condições da mulher. Não à toa essa movimentação tem mexido bastante com as escolhas de compra delas.

Machismo não passará

Campanhas sexistas têm sido alvo constante de denúncias e maculado a imagem de marcas tradicionais. Elas geralmente são focadas em um público masculino, , fazem apologia ao assédio e ao estupro e trabalham com estereótipos de gênero grotescos na tentativa de gerar humor e identificação do público. Aparece com frequência a figura da gostosa, da mulher burra, submissa ou incapaz de fazer escolhas por si só.

Apesar de ser um apelo comum no universo da moda, é o caso de muitas outras marcas conectadas ao mundo masculino: cerveja, perfumes, alimentos, entre outras.

American Apparel Tom Ford Magnum

Cada vez mais essas campanhas sofrem linchamentos nas redes sociais, o que muitas vezes provoca a retirada de circulação da propaganda. É um alerta de que as mulheres estão acordando com força.

Estereótipos de gênero

Em 2013, um estudo apontou que 65% das mulheres não se identificavam com a forma como eram retratadas pela publicidade. Isso porque muitas campanhas fazem uso de estereótipos de gênero nocivos às mulheres, que podem passar despercebidos porque já estão normalizados socialmente. A mulher ruim no volante, a que só se interessa em compras e coisas supérfluas, a heterossexual cisgênera que faz tudo por um homem e outras caricaturas reforçam prisões femininas e perpetuam desigualdade.

A campanha “Trânsito + gentil” da Porto Seguro, por exemplo, reforça o dito “mulher no volante, perigo constante”, que permeia nossa cultura e prejudica as mulheres.

Um olhar mais apurado é muito importante se quisermos falar de marcas realmente comprometidas em beneficiar as mulheres e contribuir para um mundo de mais igualdade entre os gêneros. Tudo importa: a quantidade de mulheres representando papéis relevantes, como aparecem vestidas, que profissões desempenham (imperam mães e profissões de cuidado, como professoras e enfermeiras em vez de cientistas e escritoras), em que cenário e contexto são colocadas (compras e fofocas com as amigas, por exemplo), como são relacionadas às figuras masculinas (sempre as namoradas e esposas girando em torno dos homens), etc.

Estes pontos são importantes e delicados, porque definem cultura e educam gerações inteiras de modo bastante silencioso, reproduzindo muitas vezes um contexto social gerador de disparidade entre homens e mulheres.

Representatividade e padrões de beleza

Também é importante olhar para a quantidade e tipo de mulheres que estão na mídia, por um recorte de diversidade. Na mídia sempre ganham destaque as mulheres dentro de certos padrões estéticos (magra, branca, de cabelos lisos). A diversidade racial e de corpos raramente é representada sob uma perspectiva real: a mulher negra não é tão negra e a mulher gorda é, na verdade, uma moça ligeiramente fora do padrão das revistas femininas.

woman punch

Normalmente, o que vemos nas telas e páginas de revista são também mulheres jovens. Uma pesquisa mostrou que, nos Estados Unidos, 71% das mulheres representadas na TV têm entre 20 e 30 anos, mas elas são só 39% da população. Enquanto isso, apenas 26% das mulheres representadas na mídia tem 40 anos ou mais — e elas são 47% da população.

“O sistema patriarcal, o sistema dominado por homens, valoriza as mulheres por serem reprodutoras e ponto. Então, o valor delas está limitado ao tempo em que elas são sexualmente ativas, férteis. Elas perdem muito valor [social] depois disso. É como se chegassem aos 39 e depois precisassem desaparecer.” — Gloria Steinem, jornalista e ativista do movimento feminista, no documentário Miss Representation

Crescemos vendo nas propagandas mulheres que representam uma pequeníssima parcela das mulheres reais, o que fomenta a perseguição a um ideal de beleza inalcançável.

Empoderar não é mudar de estereótipo

Um erro frequentemente cometido pelas marcas ao tentar renovar o olhar para a mulher é trocar um estereótipo antigo por um outro, mais moderno. Se antes os estereótipos giravam em torno de ter o corpo perfeito, um ótimo parceiro e uma bela família, hoje a “nova mulher” é poderosa, bem-sucedida, forte e inteligente.

As prisões mudam de aparência, mas seguem ali, se acumulando numa lista sem fim de coisas que as mulheres devem fazer para serem boas o suficiente.

Muitas vezes, também, empoderamento e sucesso são traduzidos como a simples inversão de papéis tradicionais na família, ou associação de características entendidas como masculinas às mulheres (como poder, dinheiro, altos cargos, força etc.).

Propaganda de 2011 do Fiat Idea

Não é isso que buscamos quando falamos em empoderamento feminino. O assunto é bem mais complexo e envolve estruturas sociais profundas.

As marcas precisam ajudar a libertar as mulheres sem criar novos conceitos de mulheres-modelo, que não contribuem em nada para alcançarmos igualdade de gênero.

Não basta falar em ‘empoderar’ para vender

Estamos sofrendo o impacto de catástrofes naturais e sociais ligadas à exploração irresponsável dos recursos naturais. Nesse contexto mais amplo, fazer melhores opções de consumo é uma pauta tão urgente para as mulheres quanto as diferenças entre gêneros.

Por uma perspectiva mais específica, é importante lembrar que, como consequência do processo de empoderamento, as mulheres desenvolveram um olhar mais cuidadoso e compassivo para a saúde e a própria aparência física. Essa jornada vai de encontro ao consumo exacerbado. Queremos, cada vez mais, nos livrar de produtos desnecessários ou nocivos, e isso passa por saber o que estamos comprando.

Shohei Hanazaki
Shohei Hanazaki

Antes, a ferramenta mais hábil das marcas era usar fraquezas das mulheres para vender para elas. Do mesmo jeito, usar empoderamento apenas como estratégia publicitária vazia fica bastante óbvio e pega mal. Cooptar a causa só para vender mais coisas das quais elas não precisam realmente, sem de fato ter uma proposta maior ou uma agenda útil ligada à igualdade de gênero, é reforçar o problema e não ajudar a solucioná-lo. É só um novo jeito de dizer que não somos suficientemente boas e precisamos mesmo é daquele produto ou do que ele traduz simbolicamente.

Boas práticas

Há marcas que apoiam movimentos amplos pela igualdade. É o caso da Boticário, que além de direcionar várias campanhas publicitárias para o assunto também financiou o documentário (vídeo abaixo) em parceria com a ONU Mulheres Brasil. Outro exemplo é a Avon, com a campanha #Belezaquefazsentido e o Instituto Avon, com vários movimentos como a campanha Fale sem medo, para combater a violência doméstica.

A ESPN lançou uma plataforma para estimular o esporte feminino brasileiro.

Campanha da Microsoft Brasil convoca garotas que queiram aprender a programar de um jeito divertido, incentivando a representatividade no mercado de tecnologia.
Campanha da Microsoft Brasil incentiva a representatividade no mercado de tecnologia.

Igualdade de gênero dentro de casa

Muitas vezes as marcas só pensam em igualdade de gênero como tema a ser abordado numa campanha. Mas e da porta pra dentro? Quantos líderes daquela empresa são mulheres? Existem comitês para tratar de assuntos ligados à mulher e à igualdade de gênero? Há incentivo para contratação e promoção de mulheres? Integração das crianças à rotina de trabalho? Qual é a proporção de mulheres e homens?

Mais que boas campanhas, é muito melhor ver empresas que abraçam o assunto de um jeito verdadeiro, palpável, honesto.

Precisamos olhar para as questões de gênero com mais seriedade. De um lado, nós, mulheres, podemos, junto com a jornada de empoderamento, fazer melhores escolhas de consumo. Do outro, as marcas precisam usar seu potencial de alcance para de fato criar uma nova cultura de igualdade.

Versão resumida ×

Há algum tempo, e principalmente para as mulheres, igualdade de gênero se somou à lista de questões socialmente relevantes para serem observadas com cuidado na hora de escolher uma marca.

Campanhas sexistas têm sido alvo constante de denúncias e maculado a imagem de marcas tradicionais. Elas geralmente são focadas em um público masculino, , fazem apologia ao assédio e ao estupro e trabalham com estereótipos de gênero grotescos na tentativa de gerar humor e identificação do público. Aparece com frequência a figura da gostosa, da mulher burra, submissa ou incapaz de fazer escolhas por si só.

Antes, a ferramenta mais hábil das marcas era usar fraquezas das mulheres para vender para elas. Do mesmo jeito, usar empoderamento apenas como estratégia publicitária vazia fica bastante óbvio e pega mal.

As marcas precisam ajudar a libertar as mulheres sem criar novos conceitos de mulheres-modelo, que não contribuem em nada para alcançarmos igualdade de gênero. Há marcas que apoiam movimentos amplos pela igualdade. Mais que boas campanhas, é muito melhor ver empresas que abraçam o assunto de um jeito verdadeiro, palpável, honesto.

Exibir texto integral

Vá Além

A Revolução Delas

O Coletivo 65/10 lançou um estudo ligado a nova imagem da mulher na publicidade, chamado A Revolução Delas.

Consumir menos não é uma missão simples para as mulheres

O texto conta um pouco do efeito da mídia nos atos de consumo das mulheres.

Indústria cinematográfica e a discriminação das mulheres

Essa reportagem traz números sobre a representação da mulher no cinema a partir de um estudo feito pela ONU Mulheres, Geena Davis Institute e Fundação Rockefeller.

Comente

Mudando de assunto...

O espírito punk do movimento Do It Yourself

Lowsumerism

Foi com o movimento punk, que partia de uma ética que fugia do espectro do consumismo cada vez mais visível na vida em sociedade, que o DIY se difundiu, desde então com crescente relevância. Em essência, tanto o punk quanto o DIY enfatizam uma relação de maior intimidade com nosso consumo pessoal. Cada vez mais conscientes do impacto humano em nosso ethos, existe uma grande parcela de indivíduos que já aderiu, de uma forma ou outra, ao espírito punk presente no método “faça você mesmo”.

Realidade mista: amálgama de tecnologias cria virtualidades reais

Playing Reality

Ao longo dos últimos anos, vivemos um crescimento exponencial do uso dos meios pelos quais interagimos — e imergimos — em ambientes digitais. O próximo passo dessa evolução pode nos levar a não mais diferenciar em qual destas múltiplas realidades estaremos vivendo.

Transição para Era de Aquário: além do viés astrológico

Sabedoria Natural

Estamos em transição para uma nova era, mais afetiva, feminina e orientada pelo sentimento e a intuição. O que os astrólogos chamam de era de Aquário é o mesmo que os economistas chamam de capitalismo consciente. É a era do conhecimento para os filósofos, a era caórdica para os intelectuais e a era digital para os tecnológicos. Humanistas chamam de novo humanismo e varejistas de crise.