Identidades e normas: como atingir a potencialidade de não ser
Identidade é um termo com muitas ramificações, traz consigo uma enxurrada de conceitos e costuma gerar discussões acaloradas. Hoje em dia se fala muito sobre identidade de gênero, mas também existem identidades ligadas à classe social e econômica, raça, consumo, nacionalidade, sexualidade e muitas outras. A palavra identidade de maneira geral perpassa por esses conceitos e muitos outros: não existe uma identidade única e sim um quebra-cabeça que acaba por criar o que chamamos de “EU”.
Mas o que não percebemos é que o “EU” não é necessariamente a real expressão do que somos, mas sim uma criação sistemática que se vale de várias medidas externas a nós. Ou seja, diversas identidades que, impostas ou não, acabam por nos segmentar e enquadrar. É preciso entender que a identidade é construída a partir de traços do nosso “ser” que servem como guia, mas também como jaula.
Norma heterossexual e identidade
Uma das maiores concretizações dessa dinâmica das identidades é representada pela heterossexualidade e nas sexualidades desviantes a ela, como a homossexualidade. O fato de sentir atração sexual e romântica por um indivíduo do mesmo sexo costuma se associar a uma identidade homossexual que, ao mesmo tempo em que ajuda a nortear a vida do indivíduo e lhe dá um senso de comunidade, o restringe.
Apesar de uma pessoa homossexual ter se libertado da norma heterossexual na sua vida sexual e romântica, ela ainda vive dentro da norma, pois a sociedade é heteronormativa.
“Acredito que ser gay não seja se identificar aos traços psicológicos e às máscaras visíveis do homossexual, mas buscar definir e desenvolver um modo de vida.” – Michel Foucault
Como pode, por exemplo, existir uma moda freegender em uma sociedade heteronormativa? O gênero livre vai sempre esbarrar na norma, e com isso nunca vai atingir a sua real expressão. Quando falamos sobre moda ou estilo, em geral esquecemos de perguntar quem tem acesso a esses conceitos, como essas pessoas têm acesso e em que situação ele se expressa. Com isso nos deparamos com coleções que apesar de se dizerem freegender, parecem mais figurinos de filmes distópicos onde tudo é cinza e sem vida.
É muito fácil pensar que nos expressamos verdadeiramente quando vivemos em ambientes fechados, onde o direito de ser quem se é já foi conquistado, como em um grupo de amigos.
Agora pense em uma pessoa que mora na periferia e que decide se expressar fora da norma a partir das roupas que usa, para ir a uma festa no centro da cidade. Então ela se vê obrigada a andar algumas quadras para chegar ao ponto de ônibus, pegar outro ônibus em seguida, quem sabe metrô e, por fim, andar mais um pouco até chegar à festa. Durante esse caminho, onde a norma heterossexual é dominante, essa pessoa está vulnerável a todo tipo de opressão possível, fazendo com que sua expressão não seja como aquela romantizada em artigos, propagandas e clipes de música, mas sim uma marcha de sobrevivência. Para uma pessoa não-binária, usar um produto que ela sinta adequada a sua identidade não é uma mera questão de expressão, mas sim de supervivência.
É aí então que começam a faltar peças no quebra-cabeça das identidades. A expressão dessa identidade tem limitações que variam de indivíduo para indivíduo e de lugar para lugar. Para abolir a heteronormatividade, por exemplo, seria preciso abolir também tudo o que dá suporte a ela, como cadeias, banheiros, escolas, fronteiras e todas as outras inúmeras instituições em que vivemos confinados e que carregam consigo lógicas de gênero e sexualidade binárias.
“Nós agimos como se ser homem ou ser mulher fosse efetivamente uma realidade interna ou algo que é simplesmente verdadeiro sobre nós, um fato sobre nós, mas na realidade, é um fenômeno que está sendo produzido e reproduzido o tempo todo, então dizer que gênero é performativo é dizer que ninguém é realmente um gênero de o início.” — Judith Butler
A emancipação é possível em um mundo normativo?
Discursos fáceis não farão esse trabalho. Para emancipar o ser humano é necessário reavaliar tudo aquilo que, muitas vezes, não damos como determinante à construção da identidade.
Pegue como exemplo o machismo: como exterminar a ideia de que o masculino é superior ao feminino sem antes repensar toda a lógica de consumo dividido entre gêneros e como esse consumo é difundido?
Enquanto a comunicação direcionada ao homem for a do macho alfa, existirá o desejo do homem em se posicionar no mundo como uma pessoa forte, sem emoções e violenta. Ele precisa emular aquilo que é ser homem para ser aceito.
Homens e mulheres são iguais, o que os divide são os estereótipos (papéis de gênero), e esses são ensinados e reforçados diariamente antes mesmo do nascimento. Sendo assim, como esperar que uma mulher ou homem não performem o que aprenderam? E de onde surgem esses estereótipos? Além das lógicas de consumo e formas de comunicar já citadas, mais uma vez voltamos às estruturas nas quais estamos inseridos: escolas, prisões, fronteiras, trabalho, classes.
Para melhor compreensão sobre o confinamento em que vivemos, recorrerei ao conceito de corpo sem órgãos cunhado por Antonin Artaud e explorado pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari. Em resumo, a teoria explicita que, a partir do momento em que nascemos, são dados aos nossos órgãos, ao nosso corpo, finalidades, para que assim nos encaixemos na sociedade e sejamos capazes de produzir o que o meio supostamente precisa. Com isso, ocorre a supressão de tudo o que poderíamos ser, uma vez que os nossos desejos e anseios, a nossa vida, são canalizados para um fim que não é nosso.
Ou seja, a sociedade rouba o seu corpo para fazer dele uma máquina de produção, produção de desejos, produção de vida mecânica. Em resposta a isso, os filósofos propõem o corpo sem órgãos, que é contrário ao organismo, é contrário à instrumentalização das nossas vidas para fins pré-determinados. Esse corpo busca produzir novas realidades consideradas improdutivas, que desafiam o status quo, que não se permitem ser adestradas.
Tendo isso em mente, podemos ver que só é possível nos expressar se formos capazes de nos livrar de todas as lógicas criadas para o nosso corpo, se pudermos ser contraproducentes, ter um corpo sem órgãos. Isso significa repensar classes sociais e econômicas e como elas se valem das lógicas de trabalho para sobreviver. Significa repensar a educação das crianças a fim de não impor a elas lógicas de gênero que nada tem a ver com biologia. Significa parar de ser discurso para ser ação, parar de ter pessoas transexuais na propaganda, mas não na diretoria, parar de criar coleções sustentáveis que não paguem bem os colaboradores.
A cultura jovem e o poder de mudança
O poder de mudança, o poder de ser um corpo irrestrito, está nas mãos das jovens e dos jovens, é a sede por revolucionar da juventude atual que fará nascer a inovação dos corpos, corpos que trabalhem para satisfazer sensações e não fins sociais, corpos que não respondem a dinheiro, horário, prazos, produtos, rótulos, mas sim a prazeres e experiências.
A liberdade só é possível se deixarmos de lado o corpo anestesiado que nos foi imposto. A existência não tem uma finalidade como costumava-se pensar, ela tem um meio e esse meio só existe na essência do que nos faz bem. Se é dormir, nadar, comer, trabalhar, viajar, se entorpecer, fazer sexo, meditar, tocar violino, ou passar dias apenas contemplando a natureza, pouco importa.
O importante é fugir da lógica social, da rotina, e buscar novas associações para a vida e para a realidade, gerar intensidade para o corpo, explorar novos limites. Só então, quando não tivermos mais os nossos corpos restritos às normas, é que encontraremos a confluência das identidades — ou mesmo a negação de todas elas — e viver a potência de existir, mesmo que essa potência seja não ser. Há potência no repouso em uma sociedade que não para. Logo, é só na busca pelo corpo livre que será possível se emancipar, sempre lembrando que sair das normas em uma sociedade pautada por elas traz consequências, então a pergunta é: até onde você iria para alcançar um corpo livre e não ser o que te mandam? Até o fim!
“Sou um amante fanático da liberdade, considerando-a como o único espaço onde podem crescer e desenvolver-se a inteligência, a dignidade e a felicidade dos homens.” – Mikhail Bakunin
Identidade é um termo com muitas ramificações, traz consigo uma enxurrada de conceitos e costuma gerar discussões acaloradas. Hoje em dia se fala muito sobre identidade de gênero, mas também existem identidades ligadas à classe social e econômica, raça, consumo, nacionalidade, sexualidade e muitas outras. A palavra identidade de maneira geral perpassa por esses conceitos e muitos outros: não existe uma identidade única e sim um quebra-cabeça que acaba por criar o que chamamos de “EU”.
Mas o que não percebemos é que o “EU” não é necessariamente a real expressão do que somos, mas sim uma criação sistemática que se vale de várias medidas externas a nós. Ou seja, diversas identidades que, impostas ou não, acabam por nos segmentar e enquadrar. É preciso entender que a identidade é construída a partir de traços do nosso “ser” que servem como guia, mas também como jaula.
Uma das maiores concretizações dessa dinâmica das identidades é representada pela heterossexualidade e nas sexualidades desviantes a ela, como a homossexualidade. O fato de sentir atração sexual e romântica por um indivíduo do mesmo sexo costuma se associar a uma identidade homossexual que, ao mesmo tempo em que ajuda a nortear a vida do indivíduo e lhe dá um senso de comunidade, o restringe.
Apesar de uma pessoa homossexual ter se libertado da norma heterossexual na sua vida sexual e romântica, ela ainda vive dentro da norma, pois a sociedade é heteronormativa.
É muito fácil pensar que nos expressamos verdadeiramente quando vivemos em ambientes fechados, onde o direito de ser quem se é já foi conquistado, como em um grupo de amigos. Agora pense em uma pessoa que mora na periferia e que decide se expressar fora da norma a partir das roupas que usa, para ir a uma festa no centro da cidade. Durante o caminho, onde a norma heterossexual é dominante, essa pessoa está vulnerável a todo tipo de opressão possível. Para uma pessoa não-binária, usar um produto que ela sinta adequada a sua identidade não é uma mera questão de expressão, mas sim de supervivência.
Para emancipar o ser humano é necessário reavaliar tudo aquilo que, muitas vezes, não damos como determinante à construção da identidade. Pegue como exemplo o machismo: enquanto a comunicação direcionada ao homem for a do macho alfa, existirá o desejo do homem em se posicionar no mundo como uma pessoa forte, sem emoções e violenta.
Só é possível nos expressar se formos capazes de nos livrar de todas as lógicas criadas para o nosso corpo, se pudermos ser contraproducentes, ter um corpo sem órgãos. Isso significa repensar classes sociais e econômicas e como elas se valem das lógicas de trabalho para sobreviver. Significa repensar a educação das crianças a fim de não impor a elas lógicas de gênero que nada tem a ver com biologia. Significa parar de ser discurso para ser ação, parar de ter pessoas transexuais na propaganda, mas não na diretoria, parar de criar coleções sustentáveis que não paguem bem os colaboradores.
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