Zero Waste: o futuro da consciência ambiental

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Uma complexa transformação na sociedade atualiza o manual de “cidadão sustentável”, colocando em cena projetos de "lixo zero"

por Fernanda Franco Cannalonga

A forma como a sociedade encara seus deveres em relação ao meio ambiente mostra sinais de que ela está passando por uma importante e complexa transformação. Os anos de repetição do mesmo manual de “cidadão sustentável” estão chegando ao fim. Separar o lixo reciclável, economizar água e plantar árvores não basta para os novos protagonistas desta história. Algumas pessoas estão colocando a mão na massa, assumindo o poder e a responsabilidade e falando: chega de produzir lixo!

A grande promessa de salvação, a reciclagem do lixo, não é um processo tão novo assim. Começou nos tempos de recessão e guerras, por necessidade e não por consciência. Mais de quatro décadas se passaram e a reciclagem ainda não é intrínseca ao comportamento do ser humano. Além disso, a maioria das cidades não tem centrais de reciclagem suficientes para processar a quantidade de lixo gerado. Em São Paulo, ainda que exista a coleta seletiva, o problema é a capacidade: menos de 10% do que é descartado diariamente é reciclado. É muito pouco para que apenas isso faça a diferença.

Longe dos olhos, longe do pensamento

Quando uma pessoa não quer mais um objeto, este objeto precisa ir para algum lugar. O movimento de descarte é feito quase que de forma automática, seja devido aos hábitos da população ou à escassez de soluções oferecidas pelos governos. Poucas pessoas pensam no destino e na consequência do lixo que geram, e a responsabilidade sobre este problema é transferida integralmente para o Estado. O lixo normalmente acaba em áreas mais distantes das cidades, em ilhas ou mesmo em outros países mais pobres, com leis menos rígidas. O importante é que esteja longe dos olhos e dos narizes.

No mundo globalizado, os jovens começam a rejeitar a ideia de que suas sobras entram nessa “incrível máquina da invisibilidade”. Eles enxergam a necessidade de reduzir ou zerar sua produção de lixo.

Viver sem produzir lixo é um exercício em todas as esferas da vida urbana. Tudo que compõe uma casa, que é consumido, comido ou vestido tem potencial para acabar em algum aterro.

O modelo em que tudo é descartável começa a sair de cena e dá lugar aos projetos de “zero waste”, ou “lixo zero”. Apesar de algumas pessoas pensarem que esse estilo de vida é impossível e não se encaixa na vida urbana, ele ganha mais e mais adeptos todos os dias no Brasil e no mundo. É um modo de viver que exige abdicar de algumas conveniências da sociedade moderna, como a entrega de comida em casa, mas ele permite redescobrir outros prazeres, como o de cozinhar o seu próprio jantar com ingredientes da sua horta ou utilizar o dinheiro economizado com essa mudança de estilo de vida para viver experiências em vez de acumular objetos.

A nova cara da ecologia

Lauren Singer
Lauren Singer

Lauren Singer vive no Brooklyn, em Nova York, e é formada em estudos ambientais. Nada muito incomum, não fosse o fato de que todo o lixo que ela produziu nos últimos dois anos cabe em um pote de geléia. Quando estava na faculdade, Lauren percebeu que não adiantava apenas afirmar que amava o meio ambiente, ela sentiu que era preciso viver como se realmente o amasse. Foi assim que sua jornada sem desperdício começou. Através de seu blog, o Trash is for Tossers, ela documenta seu estilo de vida e mostra como ele pode ser simples, financeiramente viável e divertido.

Um dos primeiros passos dela foi buscar alternativas a produtos essenciais que só estão disponíveis no mercado em embalagens descartáveis, como creme dental, produtos de limpeza e higiene. Ela pesquisou e passou a produzi-los em casa, com ingredientes naturais e sem componentes poluentes (que não deixam de ser lixo). Recentemente, Lauren criou por meio de uma campanha de financiamento coletivo a marca Simply & Co., em que ela comercializa o detergente para roupas que produz com apenas três componentes: bicarbonato de sódio, carbonato de sódio (um tipo de sal, que deixa o produto mais potente) e sabonete vegetal.

O supermercado Original Unverpackt, em Berlim.
O supermercado Original Unverpackt, em Berlim.

Criar produtos ou serviços ecológicos é um passo natural para muitas pessoas que buscam um estilo de vida mais consciente e alinhado com seus valores. Isso aconteceu também com a Milena Glimbovsky e a Sara Wolf, de Berlim, que perceberam que as embalagens representam a maior parte do lixo não orgânico. Elas fundaram o Original Unverpackt, um supermercado em que o consumidor pode comprar todos os produtos a granel, levando seus próprios recipientes reutilizáveis. O crescente hábito de fazer compras a granel também incentivou Bea Johnson a criar o aplicativo Bulk, que facilita a busca por lojas e mercados que vendem produtos sem embalagem nas proximidades do usuário. Hoje são mais de mil locais cadastrados por todo o mundo, que podem ser adicionados pelos próprios consumidores.

O aplicativo Bulk
O aplicativo Bulk

Economia de compartilhamento

Repensar os hábitos de consumo também faz parte desta mudança de estilo de vida. Utilizar o que já está disponível gera menos desperdício, e recusar-se a comprar um novo produto é uma solução. Pode-se imaginar que zelar pelo seus bens e consertar o que se quebra em vez de jogar fora faz parte desta prática.

Novos aplicativos e redes sociais voltam-se para este comportamento. Por meio deles é possível suprir a demanda existente por produtos sem que nenhum novo recurso seja gasto. É o caso do Tem Açúcar?, uma plataforma online para trocas não monetárias entre vizinhos. O site incentiva o resgate do antigo hábito de bater à porta do vizinho para pedir algo emprestado e traz de volta o senso de comunidade. A iniciativa da brasileira Camila Carvalho já tem 52.000 usuários inscritos que trocam de tudo desde dezembro de 2014. Em uma pesquisa recente com os usuários, ela descobriu que é possível até montar uma festa com toda decoração emprestada.

Outro exemplo no Brasil é o Banco de Tecido, um espaço físico que disponibiliza cortes de tecidos diversos, em que qualquer pessoa pode depositar, retirar e comprar tecidos por quilo. Esta iniciativa é especialmente interessante para os adeptos do lixo zero, pois tecidos não costumam ser reciclados, e lá eles voltam ao mercado e podem ser utilizados por outras pessoas.

sacola plástica

Compartilhar também é um exercício de generosidade e desapego. Projetos como o estimulam a doação no dia a dia de forma bastante natural e prática. O movimento surgiu em um grupo do Facebook em Berlim e já tem versão brasileira em Porto Alegre e São Paulo. São permitidas doações de objetos, como celulares, ferramentas e móveis, ou de experiências, como aulas e ingressos para museus.

Compostagem: o ciclo do prato ao prato

Não só de embalagens e objetos velhos são feitos os aterros, boa parte é lixo orgânico. Ainda que enterrar resíduos como sobras de alimentos, cascas de ovos, plantas e borra de café pareça uma boa ideia, existe uma técnica correta para isso, a compostagem. Anne Marie dá dicas em seu blog The Zero Waste Chef sobre como ter uma cozinha livre de lixo. São três os passos necessários para reduzir a matéria orgânica na hora do preparo de alimentos. Primeiro é preciso comprar menos e melhor, apenas o que for necessário e muito bem planejado. Depois, utilizar os alimentos de forma integral, ou seja, cozinhar com cascas e talos. Por fim, compostar aquilo que não pôde ser consumido.

Horta do Shopping Eldorado que utiliza adubo proveniente da compostagem de restos de alimentos da praça de alimentação. Imagem: Thiago Mattos/Folhapress
Horta do Shopping Eldorado que utiliza adubo proveniente da compostagem de restos de alimentos da praça de alimentação. Imagem: Thiago Mattos/Folhapress

A compostagem torna possível fechar o ciclo do prato ao prato: uma horta provê os ingredientes para a receita, as sobras são compostadas e o composto aduba a terra da horta. O Shopping Eldorado, em São Paulo, com ajuda de seus funcionários, desenvolveu um projeto pioneiro em compostagem. Eles passaram a utilizar o que seria descartado da praça de alimentação para fazer adubo e criaram na laje do prédio uma enorme horta urbana.

Já a prefeitura de São Paulo selecionou 2 mil domicílios com perfis diversos para participar do Composta São Paulo. Essas casas receberam composteiras e oficinas de compostagem e plantio. A ideia é gerar dados para impulsionar e fomentar a elaboração de uma política pública que estimule a prática da compostagem doméstica na cidade.

zero waste jar

Já existem pessoas mostrando que o que parecia impossível é possível, sim. Basta saber se elas vão conseguir influenciar uma grande parcela da população, para aí sim diminuir o impacto que o meio ambiente recebe. Se essa nova consciência conseguir se multiplicar com força é possível que a geração atual ainda consiga perceber mudanças. Certamente o mundo vai precisar de muitos protagonistas nessa batalha, que troquem o fast food pela cozinha e a farmácia pela horta. Você conseguiu imaginar algumas trocas possíveis no seu dia a dia?

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Quando uma pessoa não quer mais um objeto, este objeto precisa ir para algum lugar. O movimento de descarte é feito quase que de forma automática, seja devido aos hábitos da população ou à escassez de soluções oferecidas pelos governos. Poucas pessoas pensam no destino e na consequência do lixo que geram, e a responsabilidade sobre este problema é transferida integralmente para o Estado. O lixo normalmente acaba em áreas mais distantes das cidades, em ilhas ou mesmo em outros países mais pobres, com leis menos rígidas. O importante é que esteja longe dos olhos e dos narizes.

A forma como a sociedade encara seus deveres em relação ao meio ambiente mostra sinais de que ela está passando por uma importante e complexa transformação. Os anos de repetição do mesmo manual de “cidadão sustentável” estão chegando ao fim. No mundo globalizado, os jovens começam a rejeitar a ideia de que suas sobras entram nessa “incrível máquina da invisibilidade”. Eles enxergam a necessidade de reduzir ou zerar sua produção de lixo. Viver sem produzir lixo é um exercício em todas as esferas da vida urbana. Tudo que compõe uma casa, que é consumido, comido ou vestido tem potencial para acabar em algum aterro.

O modelo em que tudo é descartável começa a sair de cena e dá lugar aos projetos de “zero waste”, ou “lixo zero”. Apesar de algumas pessoas pensarem que esse estilo de vida é impossível e não se encaixa na vida urbana, ele ganha mais e mais adeptos todos os dias no Brasil e no mundo. É um modo de viver que exige abdicar de algumas conveniências da sociedade moderna, como a entrega de comida em casa, mas ele permite redescobrir outros prazeres, como o de cozinhar o seu próprio jantar com ingredientes da sua horta ou utilizar o dinheiro economizado com essa mudança de estilo de vida para viver experiências em vez de acumular objetos.

Já existem pessoas criando produtos e serviços que mostram que o que parecia impossível é possível, sim. Basta saber se elas vão conseguir influenciar uma grande parcela da população, para aí sim diminuir o impacto que o meio ambiente recebe. Se essa nova consciência conseguir se multiplicar com força é possível que a geração atual ainda consiga perceber mudanças. Certamente o mundo vai precisar de muitos protagonistas nessa batalha, que troquem o fast food pela cozinha e a farmácia pela horta. Você conseguiu imaginar algumas trocas possíveis no seu dia a dia?

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Vá Além

Porque eu vivo uma vida sem lixo?

Lauren Singer fala para o público do TedXTeen sobre sua decisão de parar de produzir lixo. Também narra seus passos em direção a esse estilo de vida. "Eu sou apenas uma pessoa preguiçosa como outra qualquer, eu não viveria assim se fosse difícil. Na verdade, os benefícios são muito maiores do que os pontos negativos", diz ela.

Em direção a um mundo sem lixo

O diretor executivo do grupo Zero Waste Europe conta nesta entrevista a filosofia por trás desta nova abordagem em relação ao lixo, sobre os casos de sucesso real dentro da Europa e os problemas de implementação em países ao redor do globo. Ele também dá conselhos práticos para quem pretende juntar-se a este movimento.

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