Comportamento Unclassed: entenda a mudança na antiga pirâmide social do consumo

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A maneira de se analisar influências de comportamento e consumo não segue mais necessariamente a lógica top-down da pirâmide de renda da sociedade

por Lorena Sganzerla ilustrações Julian Boledi

Unclassed é uma tendência de comportamento em que as pessoas se tornam cada vez mais protagonistas de suas próprias aspirações e não mais necessariamente buscam se apropriar unicamente de ideais vindos das classes sociais mais altas. Filho de um mundo contemporâneo menos dualista e hiperconectado — no qual toda e qualquer informação pode circular mais livremente entre os indivíduos — esse comportamento emergente abre a possibilidade que as pessoas não apenas tenham acesso a referências comuns independentemente de sua origem de classe, mas que também encontrem múltiplos canais para expor sua voz e se tornar uma potencial influenciadora de muitas outras.

Evidentemente as diferenças de renda continuam existindo (e não são desprezíveis) no mundo e no Brasil; no entanto, por si só, não são mais suficientes para se pressupor comportamentos. O que muda é que partir dessa lógica o consumo passa a ser guiado não apenas pelos parâmetros financeiros de alguém, mas também pelos seus gostos e estilos de vida moldados a partir da influência das mais variadas pessoas de qualquer estrato social.

Como conseqüência disso tudo, a maneira de se analisar influências de comportamento e consumo não segue mais necessariamente a lógica top-down da pirâmide de renda da sociedade e, por isso, o desafio agora é outro: é hora de sair da zona de conforto para ir além da compreensão de segmentos de mercado, faixa de renda ou classe social; é hora de começar a pensar em afinidades e, principalmente, em pessoas.

Gray Malin
Gray Malin

A insuficiência das classes sociais

Imagine se a sua herança familiar definisse o seu destino: onde você mora, que roupas vai usar, seu trabalho, o que você come e até com quem você vai se casar. Antes, ou você era nobre ou era plebeu. Os que conseguiram mudar a própria condição, literalmente entraram para a história.

No mundo moderno, isso mudou. A noção de indivíduo surgiu, moldada por revoluções como a francesa e a industrial. Daí para a ideia de que todos os seres humanos são iguais no nascimento foi um pequeno passo: surgiu a mobilidade social.

Quer dizer, nascer plebeu não era mais um destino, apenas mais um obstáculo a ser superado em direção ao conforto. Aprender uma profissão, qualificar-se, ganhar e acumular dinheiro eram o caminho para se galgar os patamares rumo ao topo da (nossa tão conhecida) pirâmide social. Trata-se da representação de como cultura e poder aquisitivo andam de mãos dadas: enquanto no topo estão os que têm os patrimônios financeiro e intelectual e os bens de consumo, o meio e a base tentam alcançar o topo.

Unclassed pirâmide social

Nesse contexto, estratificar a população em classes sociais para ler seus padrões de comportamento e consumo era uma estratégia bem sucedida. Identificar o universo de uma pessoa pelos lugares aonde ia, o carro na garagem, o bairro onde morava era muito fácil. O repertório de cada um era uma escada de referências rumo ao sucesso — e sucesso, já sabemos, era o que o seu dinheiro podia comprar.

Todos eram classificados sob um guarda chuva de conceitos verticais que eles mesmos não decidiram e, hoje, insuficientes para representar realidades e indivíduos. Classificar alguém por uma pirâmide social acabou por confinar as trajetórias particulares a uma representação que as pessoas não se apropriaram e com as quais nem sempre se identificam.

Quem insistir em delimitar suas possibilidades com base apenas em padrões verticais, hoje, não está fadado ao fracasso, mas a um destino muito pior: à obsolescência.

Abaixo o top-down: da pirâmide ao prisma

Bem-vindo a um futuro em que ninguém mais se encaixa muito bem em definições demográficas. Atravessamos a fronteira da informação sem visto permanente e sem ter para onde voltar. É como se cruzássemos para uma nova dimensão capaz de derreter o que se conhece por social location, quando renda familiar, geografia, estrato social, e filiação se tornam cada dia percentualmente menos significativos na determinação da jornada de decisões e escolhas ao longo da vida de cada pessoa.

O mundo mudou. Com ele, muda a sua interpretação. A compreensão dualista entre o topo e a base da pirâmide de classes não basta sozinha para medir as aspiração sociais de uma população. Agora, ela dá lugar a uma versão mais flexível, de duas (ou mais) vias. Modelos de comportamento e consumo passam a ser disseminados de forma muito mais orgânica e o processo de construção de referências é muito mais livre. Eis o multiverso social, enormemente influenciado pelo novíssimo universo da informação. O que antes era uma pirâmide, fez-se um prisma.

Estávamos acostumados a pensar as coisas de uma forma chapada, em duas dimensões como uma pirâmide. Mas uma pirâmide pode ser também um prisma, cujos efeitos se reproduzem para muito além dele.
Estávamos acostumados a pensar as coisas de uma forma chapada, em duas dimensões como uma pirâmide. Mas uma pirâmide pode ser também um prisma, cujos efeitos se reproduzem para muito além dele.

Explicando melhor: imagine as influências sociais, de comportamento e de consumo como raios de luzes. Se antes eles ficavam restritos ao que acontecia dentro da pirâmide, do topo para a sua base, duros, unidirecionais e monocromáticos, agora eles se expandem, multiplicam e vão para além do universo circunscrito entre as arestas de uma pirâmide. Um prisma não tem hierarquia. Qualquer um de seus lados pode fazer de um feixe de luz, um arco íris — e ele pode vir de qualquer direção.

As cores ganham o mundo e se misturam para dar origem a novas tonalidades. Não temos mais um ângulo que indique o topo ou a base porque isso começa a perder a relevância. A luz, que se revela multicolorida através do prisma, vai para muito além dele. E, assim como as cores, a construção do repertório de referências, de comportamento e de consumo (os desejos de cada um) se tornou muito mais amplo e matizado por inúmeras representações culturais, capazes de seguir caminhos independentes, e influenciar uns aos outros. Assim, subvertemos a noção que temos de pirâmide social para falar de comportamento e usamos uma metáfora mais democrática, a do prisma e de seus raios de luz multidirecionais e multicromáticos, para melhor representar o que vem acontecendo com as pessoas.

Resultado: tudo ficou mais misturado. Agora, mais do que a renda, é a afinidade o que aproxima e afasta as pessoas.

Essa é a base do comportamento Unclassed. Ou seja, assim como um elemento químico se ligaria a outro formando novas moléculas e dando origem a uma gama rica de variações, as pessoas também. Uma vez que elas tenham acesso umas às outras, à informação e aos seus repertórios mútuos, são capazes de criar, juntas, comportamentos mais flexíveis para melhor se enquadrar no mundo social. Enfim, conectam-se.

A conectividade tornou-se um meio de encontro para cada um expor a própria voz e se ver, talvez pela primeira vez, representado por um desenho muito mais realista do que em qualquer outro momento da história, seja qual for sua classe, origem ou renda.

Por isso, falar em conexão é falar em uma rua de dois sentidos: assim como você consome mais informação, você cria mais informação. Assim como você joga, você faz parte do jogo, assim como você assiste conteúdo, você produz conteúdo. As duas coisas acontecem de forma ampla, ao mesmo tempo, e elas se retroalimentam.

“A rede é muito mais que um meio de comunicação. É um meio de interação pessoal, de organização, de relação à distância e um meio no qual a vida pessoal é integrada”.
Manuel Castells

Se acessar entretenimento e se, de alguma forma, educar-se ficou muito mais simples e barato, mais gente acessa mais coisas. Quem não podia desembolsar parte do seu suado dinheiro com diversão, cultura ou informação, agora pode e encontra um universo de possibilidades à disposição e a um clique de distância. Quem tinha, também.

Klaus Leidorf

A consequência é que não há mais alinhamentos automáticos e o comportamento de classe começa a ser ressignificado em novos símbolos como experiências, autenticidade, conexão, bem estar, uma vida ética, organicamente sustentáveis e tantos outros.

A forma como as pessoas estão construindo a sua identidade, como se expressam e como escolhem suas preferências, hoje, é mais orientada às preferências individuais do que nunca.

Agora pergunto: por exemplo, o que um sujeito loiro de olhos azuis que morou em Nova York, estudou administração e trabalhou no Citibank tem em comum com um jovem da periferia, filho de empregada doméstica, que já foi pedreiro e auxiliar de escritório? Nada além da naturalidade no passaporte? Nesse novo contexto, já podemos imaginar que muita coisa.

Estamos falando de dois grandes nomes da música: Cabal e Emicida. Sim. Os dois. Eles se encontraram pela primeira vez em uma batalha de improviso de rap — um evento de nicho muito restrito à geografia dos grupos. E detalhe: o Cabal é que veio do centro até periferia em busca de novas referências enquanto Emicida ganha cada vez mais adeptos graças ao ambiente virtual.

Essa troca, hoje tão possível quanto real, é a expressão mais rica da transformação que passamos. Se você parar para pensar, todas as coisas legais ou realmente inovadoras são derivadas da mescla de diferentes realidades e comportamentos. Ou seja, a multiplicação das histórias e trajetórias humanas crescem em progressão geométrica, produzindo novas relações e novas compreensões da realidade.

second life
Second Life

A liberdade individual nunca foi tão compartilhada. Como se, pela combinação espontânea e muitas vezes imponderável, pudéssemos realizar a máxima do poeta Píndaro, do século VI a.C.: “transforma-te em quem és”.

O Brasil Unclassed

Isso tudo que falamos até agora — mobilidade social, modelos não-verticais de comportamento, conectividade — vale, e muito, para o Brasil. Por exemplo, vamos fazer uma pequena viagem ao tempo das lan houses. O fenômeno, por volta dos anos 2000, fez com que abismos sociais fossem ultrapassados para muito além da praia ou dos parques. No Rio de Janeiro, para jogar, tanto o menino do morro de 16 anos quanto o playboy de 30 iam para as mesmas lan houses. Seus motivos, porém, eram diferentes: enquanto um buscava a máquina, que não tinha em casa, o outro buscava a velocidade de conexão. Assim como a praia ou a rua, a lan house se tornou um lugar de encontros. E, indo além, no ambiente online, jogando, as diferenças de classe sumiam completamente. Esse é um retrato do que temos vivido em muitos ambientes e camadas sociais no país.

Se antes, para ser alguém no Brasil, o sujeito tinha que virar doutor, hoje o cenário evoluiu para um quadro muito mais favorável: em 20 anos de crescimento econômico 65% da população completou o ensino médio, mais de 80 milhões de pessoas estão conectadas e 3/4 dos internautas do Brasil são da chamada classe C. O poder de compra, que estava concentrado no topo da pirâmide, expandiu-se, deixando os parâmetros mais horizontais do que nunca: ela ficou disforme, mais parecida com um losango/retângulo, e melhores condições de vida levaram mais pessoas à a faculdade.

Unclassed infográfico

Quer dizer: a geração brasileira de baby boomers, nascida na década de 1960, em sua maioria não freqüentou os bancos universitários, mas mandou os filhos para a escola. E, para muito além dos números, o Brasil mudou porque a convergência de uma economia saudável (dinheiro), educação e conectividade despertaram no brasileiro um orgulho inédito de ser quem ele é: de sua origem e, sim, de sua classe. Hoje, 89% dos jovens sentem orgulho de sua nacionalidade, origem e condição social.

“A aspiração das classes ascendentes hoje já não é repetir o sucesso das camadas bem sucedidas de outrora, quando as profissões básicas da classe média se limitavam a ser engenheiro, médico ou advogado. As profissões do futuro estão sendo inventadas hoje, pelas novas classes médias ascendentes, profissões que não se aprende em escolas ou universidades, e sim no próprio trabalho, fazendo e aprendendo uns com os outros.”
— Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente e sociólogo.

Mais do que na fala dos intelectuais, vemos isso na rua. Basta o sucesso retumbante de novelas como Avenida Brasil, de 2012. Falamos da maior fatia da população, que antes aspirava apenas um formato de sucesso: mimetizar o que o topo da pirâmide consumia. Hoje, ela quer se ver retratada de uma forma mais próxima à sua realidade e, pela primeira vez, o núcleo principal da novela da TV brasileira era na periferia. Não por coincidência, registrou a maior audiência da história das novelas. Subir alguns degraus na folha de pagamento não significa mais mudar todo o seu repertório cultural e/ou geográfico.

Nem por isso as pessoas querem ficar restritas ao seu entorno: todos querem ganhar o mundo, a seu jeito; e, claro, contar para todo mundo. Dado o novo contexto econômico e educacional, resolvidos os problemas mais básicos, as pessoas querem expandir seus horizontes e referências: 25.8 milhões de brasileiros estão planejando realizar uma viagem internacional em 2016, e a “classe média” representa 52,3% dessa busca.

A proximidade física e virtual entre os brasileiros é a grande revolução trazida pelo novo prisma social.

Uma vez que as pessoas descubram a própria voz ou encontrem um canal para se expressar — e sintam-se bem representadas por ele — não dá mais para voltar atrás.

As histórias pessoais se misturam, as combinações se tornam mais livres e, por que não?, muito mais criativas e autênticas. A exemplo do pop que vem da periferia. Ele é uma das principais novidades culturais do país, que se manifesta muito além da música. A moda das passarelas encontra a moda de rua; os elementos da cidade viram narrativas de cinema cult, como de João Vainer sobre o pixo; a presença massiva do funk ganha o mainstream em campanhas publicitárias.

Por isso tudo, mais do que um conceito, o comportamento Unclassed é a mistura livre de referências. O remix cultural, baseado na afinidade, encontra uma classe A, B e C que sai para curtir o sertanejo universitário nos mesmos lugares; o hip hop ganha adeptos de todas as camadas ou até mesmo o sujeito que senta ao seu lado na baia de trabalho tem uma origem muito diferente da sua. Mais do que uma aproximação física ou do gosto, falamos de um processo de pessoas tornando-se protagonistas das próprias aspirações e apropriações culturais.

Evidentemente, as diferenças de classe continuam. Ainda por algum tempo continuarão existindo (e não são desprezíveis), mas o fato é que isoladas não bastam para explicar os comportamentos que desenham o futuro nem ajudam a compreender o país ou o mundo. Vivemos um Brasil mais conectado e interessado ao que acontece à sua volta, mais maduro e capaz de aproximar diferenças sem suplantar identidades. É a diferença o que reside no coração do comportamento Unclassed e essa é uma das transformações mais importantes e inspiradoras que o país já viveu.

Por isso tudo, mais que um conceito ou um destino, o comportamento Unclassed deixa para nós um problema e um desafio: você está preparado para pensar além de segmentos demográficos, critérios mercadológicos e faixas de renda e começar a pensar, também, em pessoas?

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Unclassed é uma tendência de comportamento em que as pessoas se tornam cada vez mais protagonistas de suas próprias aspirações e não mais necessariamente buscam se apropriar unicamente de ideais vindos das classes sociais mais altas. Filho de um mundo contemporâneo menos dualista e hiperconectado — no qual toda e qualquer informação pode circular mais livremente entre os indivíduos — esse comportamento emergente abre a possibilidade que as pessoas não apenas tenham acesso a referências comuns independentemente de sua origem de classe, mas que também encontrem múltiplos canais para expor sua voz e se tornar uma potencial influenciadora de muitas outras.

Evidentemente as diferenças de renda continuam existindo (e não são desprezíveis) no mundo e no Brasil; no entanto, por si só, não são mais suficientes para se pressupor comportamentos. O que muda é que partir dessa lógica o consumo passa a ser guiado não apenas pelos parâmetros financeiros de alguém, mas também pelos seus gostos e estilos de vida moldados a partir da influência das mais variadas pessoas de qualquer estrato social.

Como conseqüência disso tudo, a maneira de se analisar influências de comportamento e consumo não segue mais necessariamente a lógica top-down da pirâmide de renda da sociedade e, por isso, o desafio agora é outro: é hora de sair da zona de conforto para ir além da compreensão de segmentos de mercado, faixa de renda ou classe social; é hora de começar a pensar em afinidades e, principalmente, em pessoas.

Nesse contexto, estratificar a população em classes sociais para ler seus padrões de comportamento e consumo era uma estratégia bem sucedida. Identificar o universo de uma pessoa pelos lugares aonde ia, o carro na garagem, o bairro onde morava era muito fácil. O repertório de cada um era uma escada de referências rumo ao sucesso — e sucesso, já sabemos, era o que o seu dinheiro podia comprar.

O mundo mudou. Com ele, muda a sua interpretação. A compreensão dualista entre o topo e a base da pirâmide de classes não basta sozinha para medir as aspiração sociais de uma população. Agora, ela dá lugar a uma versão mais flexível, de duas (ou mais) vias. Modelos de comportamento e consumo passam a ser disseminados de forma muito mais orgânica e o processo de construção de referências é muito mais livre. Eis o multiverso social, enormemente influenciado pelo novíssimo universo da informação. O que antes era uma pirâmide, fez-se um prisma.

O comportamento Unclassed deixa para nós um problema e um desafio: você está preparado para pensar além de segmentos demográficos, critérios mercadológicos e faixas de renda e começar a pensar, também, em pessoas?

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