Tecnologia além do binarismo: ele, ela ou ciborgue?
Da Vinci, Graham Bell, Zuckeberg e Bill Gates. Esses são exemplos de inventores de tecnologias importantes para a sociedade atual. O que eles têm em comum?
Mesmo com a inclusão crescente e progressiva da mulher no mercado de trabalho e de notáveis contribuições femininas, a imagem associada a engenheiros, inventores e programadores ainda é essencialmente masculina.
A mulher sempre foi associada à criação da vida, a Eva, à natureza. Mesmo em mitos gregos Hera, Héstia, Deméter e Perséfone se contrapunham a Hefesto e Ares, que lidam com o artificial, aquilo que é humanamente criado. Enquanto os homens são considerados naturalmente racionais, as mulheres são consideradas naturalmente emotivas. Enquanto o homem é visto como aquele que domina a natureza e cria o artificial, a figura da mulher é associada àquilo que é natural e biológico. Por isso, não é de se estranhar que a tecnologia não compactue com o “feminino”, pois em nível simbólico suas associações são opostas.
“Uma maneira fundamental na qual gênero é expresso em qualquer sociedade é através da tecnologia. Habilidades técnicas e domínios de especialização são divididos entre e dentro dos sexos, moldando masculinidades e feminilidades.” — Judy Wajcman
A criação das tecnologias também se insere dentro desta lógica que favorece certas ideologias ou representações, normalmente relacionados aos grupos majoritários que fazem parte da sua concepção e utilização. Assim, a tecnocultura, que circunda as pessoas que criam os devices usados por grande parte da população, está incorporada nestes valores dualistas. Isso explica a existência de tecnologias que abandonam necessidades de mulheres, ou utilizam-se de estereótipos depreciativos.
O pesquisador Clifford Nass explica em seu livro O homem que mentiu para seu computador que as pessoas se relacionam com seus assistentes pessoais comandados por voz da mesma maneira que se relacionam com outras pessoas. “Vozes de mulheres são vistas em média, como menos inteligentes do que vozes masculinas”. A escolha de uma voz feminina, assim, faz com que o usuário “perdoe” mais facilmente eventuais deficiências do sistema de reconhecimento de voz.
Estas assistentes são como secretárias virtuais, uma posição subjugada ao usuário e historicamente exercido por mulheres. A fim de agradar um grande sistema mercadológico, são desenhadas da maneira mais universal possível — e isso reforça os estereótipos hegemônicos sobre o que é feminino.
Além do dualismo
Apesar da predominância sexista no meio tecnológico, a crescente conectividade e acesso às tecnologias informacionais abrem espaço para experimentações e usos inclusivistas e questionadores. Por exemplo, com o uso de ferramentas como o Oculus Rift ou chips sensoriais, pode-se literalmente olhar com os olhos de outra pessoa ou sentir na pele o que o outro sente.
Um grupo de estudantes de Barcelona, chamados de BeAnotherLab, procurou emular uma “troca de corpos” usando realidade virtual
“A internet tornou-se um importante laboratório social para a experimentação com as construções e reconstruções do eu que caracterizam a vida pós-moderna.” — Sherry Turkle, pesquisadora do MIT
Estes processos mesclam os limites entre o real e o virtual, o cibernético e o humano. Além da empatia proporcionada por essas práticas digitais, a possibilidade que temos de construir representações completamente novas através do 3D ou da realidade virtual abre caminho para a quebra de velhos paradigmas dicotômicos. Jogos como Second Life, por exemplo, permitem a experimentação de diferentes tipos de subjetividade, personificação e identidade.
Afinal, como pode continuar a fazer sentido uma hierarquização do masculino sobre o feminino se é possível transitar entre eles com tamanha facilidade? No mundo conectado, hierarquias tradicionais são substituídas por redes horizontais, difusas, flexíveis.
Em 1985, Donna Haraway propôs a criação de um indivíduo ciborgue, híbrido de humano e máquina, como uma nova representação que mudaria as perspectivas gendradas atuais. A partir da imagem do ciborgue, velhas dicotomias sucumbiriam: o natural e o artificial seriam mesclados, criando um novo ser constituído de matéria orgânica e inorgânica. Seria uma maneira de se pensar ficcionalmente sobre um futuro deslocado das imposições dualistas. A ficção, neste contexto, funciona como catalisador e também como forma de promover diferentes olhares sobre a relação humana com ciência e tecnologia.
“Uma política emancipatória da tecnologia necessita mais do que hardware e software; precisa de wetware – corpos, fluídos, agência humana.” — Judy Wajcman
Com o uso de computadores que virtualizam a identidade humana, expandem as capacidades corporais ou até mesmo permitem a reprodução independente do sexo do progenitor, a multiplicidade das representações humanas é cada vez mais amparada com o uso de tecnologias.
A integração humano-máquina pode fazer com que a humanidade adquira capacidades além daquilo que é possível biologicamente. Já tivemos a oportunidade de observar este potencial revolucionário ao aumentar a agência sobre a reprodução — o que gerou empoderamento. A exponencialidade do desenvolvimento biotecnológico fará com que o gênero passe a ser considerado uma restrição limitadora para o potencial humano, e podemos imaginar um futuro em que gênero deixe de ser imposição para ser uma escolha.
Mesmo com a inclusão crescente e progressiva da mulher no mercado de trabalho e de notáveis contribuições femininas, a imagem associada a engenheiros, inventores e programadores ainda é essencialmente masculina.
A criação das tecnologias também se insere dentro dessa lógica que favorece certas ideologias ou representações, normalmente relacionados aos grupos majoritários que fazem parte da sua concepção e utilização. Assim, a tecno-cultura que circunda as pessoas que criam os devices usados por grande parte da população está incorporado a esses valores dualistas. Isso explica a existência de tecnologias que abandonam necessidades de mulheres, ou utilizam-se de estereótipos depreciativos.
Apesar disso, a crescente conectividade e acesso às tecnologias informacionais abrem espaço para experimentações e usos inclusivistas e questionadores. Com o uso de computadores que virtualizam a identidade humana, expandem as capacidades corporais ou até mesmo permitem a reprodução independente do sexo do progenitor, a multiplicidade das representações humanas é cada vez mais amparada com o uso de tecnologias.
O desenvolvimento biotecnológico fará com que o gênero passe a ser considerado uma restrição limitadora para o potencial humano.
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