Minorias no pódio: o papel inclusivo do esporte

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Quando há novos parâmetros para a construção de ídolos, a comunicação se empenha em cumprir um papel social relevante

por Julia Oliveira

O valor de um evento do porte das Olimpíadas vai além do entretenimento. Em raras situações a mídia do mundo inteiro volta os olhares com tanta atenção para os mesmos acontecimentos e pessoas. Com tantas amostras midiáticas sobre um só objeto, é possível analisar padrões e perceber tendências por um espectro amplo.

Na edição de 2016, as manchetes foram claras. Ficou evidente que algo mudou na forma de noticiar esporte. Figuraram em peso notícias sobre mulheres que subverteram estereótipos, âncoras que vacilaram no preconceito e escorregadas de quem ainda não se adaptou ao discurso inclusivo. Esta abordagem não foi mera coincidência. A iluminação das intolerâncias é uma tendência. Tem muita gente engajada na reprovação veemente dos posicionamentos discriminatórios e na comemoração das vitórias de classes oprimidas.

Às vezes o esporte olímpico parece um mundo a parte, de deuses intocáveis que somente treinam, fazem dietas rigorosas e têm desempenho sobre-humano. Mas não é assim: esportistas também são parte da sociedade, logo, não estão imunes aos preconceitos que a permeiam.

Boicote à intolerância e idolatria da superação

Para ganhar a admiração do público não basta ter uma boa performance como atleta. Importa (e muito) quem são estes atletas fora das quadras. Racismo, sexismo, gordofobia, discriminação contra deficientes: o intolerável foi reconhecido. Os ídolos estão fragilizados. Desvios e acertos de conduta não são meros detalhes, mas assuntos dignos de manchete.

O bronze de Arthur Nory, por exemplo, foi ofuscado por seu passado racista. Para o ginasta, comparar o colega ngelo Assunção a um saco de lixo era só uma brincadeira — mas ofendeu. E rendeu, em 2015, suspensão de sua conta no Snapchat, além de afastamento pela Confederação Brasileira de Ginástica e julgamento no Supremo Tribunal de Justiça Desportiva, que acabou arquivado. Mas a internet não perdoou e relembrou o caso nas redes sociais.

O medalhista Ryan Lochte vitimizou-se forjando uma acusação de assalto. Ele queria se safar dos danos cometidos a um posto de gasolina no Rio de Janeiro. O nadador e dois colegas urinaram na parede do estabelecimento e vandalizaram o local. Descobriu-se a mentira por meio do arquivo da câmera de segurança do local. Lochte tentou se desculpar, mas já era tarde demais: perdeu respeito e patrocinadores. Em segundo plano, como se não bastasse, ainda pronunciou que a nadadora Katie Ledecky é muito boa porque “nada como um homem”. Uma legítima torneira de asneiras.

No caminho inverso, o entusiasmo com o ouro da judoca Rafaela Silva foi amplificado por suas muitas lutas na vida. O racismo enfrentado por perder um campeonato importante resultou em depressão e quase desistência do esporte. Rafaela também relata dificuldades financeiras, contraditórias ao status de atleta de ponta, que chama atenção a um problema sistemático do esporte nacional: enquanto atletas-celebridade do futebol fazem milhões por ano, uma medalhista de ouro negra, lésbica e moradora da Cidade de Deus não parece boa o suficiente para ser financiada. Cresceu a admiração do público, fez-se um novo ícone de esporte que representa toda uma minoria.

Rafaela Silva por Christian Gaul

As Paralimpíadas

Os Jogos Paralímpicos de 2016 tiveram números satisfatórios. Houve recorde de vendas, com 113 mil ingressos voando em um só dia, graças a campanhas bem sucedidas de incentivo e arrecadação, como por exemplo a Vakinha Paralimpíadas, iniciativa de crowdfunding de duas amigas.

Com o perigoso molde da #SomosTodosMacacos, a polêmica ação #SomosTodosParalímpicos, organizada pela revista Vogue Brasil, contou com atores famosos sem nenhuma deficiência física “photoshopados” com membros de atletas paralímpicos. A intenção foi empática e teve resultados positivos, mas o discurso excluiu as verdadeiras estrelas: os portadores de deficiência física. Faltou representatividade. Acertar o tom do discurso ainda é um desafio para a mídia.

O sucesso da mensagem inclusiva depende da visão de mundo da minoria, que é insubstituível e só pode ser capturada em sua complexidade por quem vive a realidade de exclusão

Apesar do prestígio dos Jogos Paralímpicos em termos de público, a cobertura da imprensa reiterou que ainda há muita diferença de tratamento em comparação às Olimpíadas. TV aberta e grandes canais de esporte, que tiveram sua programação usual completamente alterada pela ocasião das Olimpíadas, nem ao menos exibiram as cerimônias de abertura e fechamento das Paralimpíadas (salvo exceções da TV Brasil e da Cultura). Os investimentos do governo são significativamente menores, principalmente nas grandes potências olímpicas (Estados Unidos e China, por exemplo).

O tratamento de nota de rodapé levanta uma denúncia: se os Jogos Olímpicos são quase totalmente dissociados dos Paralímpicos, isso significa que portadores de deficiência física ainda são vistos pela sociedade como “especiais”, sempre num patamar inferior. Há preocupações logísticas envolvidas na união dos dois eventos, mas é importante saber que a possibilidade é cogitada. Precedentes já foram abertos: em 2012 o corredor biamputado Oscar Pistorius competiu em Jogos Olímpicos, e em 2016 o saltador Markus Rehm, que não tem uma perna, também integrou-se a atletas sem deficiências.

“A separação parece ressaltar uma distância entre pessoas com e sem deficiências. […] pessoas com deficiências merecem um cuidado especial porque têm necessidades especiais, mas também merecem a normalidade.”
Carlo Bellieni, médico

Minorias em pauta

Opressões são sistemáticas e operam em vários níveis, incluindo linguagem, edição, seleção de imagens etc. Logo, o modo com que as minorias são tratadas na mídia tem impacto direto sobre o modo como as tratamos no cotidiano.

Deslizes jornalísticos não são detalhe, mas parte do problema.

Felizmente, nestas Olimpíadas a cobertura teve muitos exemplos positivos, que refletem a popularização da consciência de gênero e sexualidade. É verdade que ainda se leu e ouviu muita asneira, tanto em notícias como em redes sociais. Atletas rechaçadas por serem gordas, atletas que “além de bonitas eram boas atletas”, atletas diminuídas pelo mérito dos homens. Mas, para cada manchete deste tipo, houve outra que denunciava o sexismo no jornalismo, que celebrava os feitos das mulheres no esporte, que anunciava com orgulho que uma mulher desafiou o machismo.

Como os homens seriam fotografados nas Olimpíadas se seus corpos fossem sistematicamente sexualizados?

2016 também foi o ano com maior índice de representatividade LGBT da história das Olimpíadas, e isso rendeu muitas matérias animadoras. Foi também o ano em que o Comitê Olímpico Internacional (COI) decidiu que pessoas trans não precisam de cirurgia de redesignação sexual. Chris Moser foi o primeiro atleta trans da equipe olímpica americana justamente por causa deste avanço.

Marjorie Enya pede a atleta Isadora Cerullo em casamento dentro de campo, momento emblemático da Rio 2016

Os Jogos Olímpicos de 2016 ensinaram que não há mais meios de varrer os preconceitos para debaixo do tapete: eles estão escancarados. Mas isso é apenas um começo.

Pensamentos tão arraigados na sociedade não vão se modificar através de sua denúncia somente. A denúncia, porém, tem grande valor: é o primeiro passo para que se concretize uma transformação social definitiva.

Os próximos passos dependem de muitos fatores, como nosso comprometimento individual com as causas. São tempos sombrios para os defensores de que o politicamente correto é “chato”. Chato mesmo é não ser tratado com respeito. Sejamos pedra no sapato.

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O valor de um evento do porte das Olimpíadas vai além do entretenimento. Na edição de 2016, as manchetes foram claras. Ficou evidente que algo mudou na forma de noticiar esporte. A iluminação das intolerâncias é uma tendência. Tem muita gente engajada na reprovação veemente dos posicionamentos discriminatórios e na comemoração das vitórias de classes oprimidas.

Esportistas também são parte da sociedade, logo, não estão imunes aos preconceitos que a permeiam. Para ganhar a admiração do público não basta ter uma boa performance como atleta. Importa (e muito) quem são estes atletas fora das quadras. Racismo, sexismo, gordofobia, discriminação contra deficientes: o intolerável foi reconhecido. Os ídolos estão fragilizados. Desvios e acertos de conduta não são meros detalhes, mas assuntos dignos de manchete.

Apesar do prestígio dos Jogos Paralímpicos em termos de público, ainda há muita diferença de tratamento em comparação às Olimpíadas. Menos investimentos do governo, pouca ou nenhuma transmissão na TV aberta e grandes canais de esporte (que tiveram sua programação usual completamente alterada pela ocasião das Olimpíadas). Mesmo quando a intenção é boa, o tom do discurso quando se trata de atletas paralímpicos ainda é um desafio para a mídia. O sucesso da mensagem inclusiva depende da visão de mundo da minoria, que é insubstituível e só pode ser capturada em sua complexidade por quem vive a realidade de exclusão.

Opressões são sistemáticas e operam em vários níveis, incluindo linguagem, edição, seleção de imagens etc. Logo, o modo com que as minorias são tratadas na mídia tem impacto direto sobre o modo como as tratamos no cotidiano. Deslizes jornalísticos não são detalhe, mas parte do problema.

Felizmente, nestas Olimpíadas a cobertura teve muitos exemplos positivos, que refletem a popularização da consciência de gênero e sexualidade. É verdade que ainda se leu e ouviu muita asneira, tanto em notícias como em redes sociais. Mas, para cada manchete negativa, houve outra que denunciava o sexismo no jornalismo, que celebrava os feitos das mulheres no esporte, que anunciava com orgulho que uma mulher desafiou o machismo. 2016 também foi o ano com maior índice de representatividade LGBT da história das Olimpíadas, e muitas matérias animadoras foram feitas a respeito disso.

Os Jogos Olímpicos de 2016 ensinaram que não há mais meios de varrer os preconceitos para debaixo do tapete. A denúncia tem grande valor: é o primeiro passo para que se concretize uma transformação social definitiva. São tempos sombrios para os defensores de que o politicamente correto é “chato”. Chato mesmo é não ser tratado com respeito.

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Com a tolerância a atletas trans no esporte, começam a surgir dúvidas sobre que parâmetros (e se deve haver parâmetros) seguir para que a competição seja justa, principalmente em relação a hormônios. O horizonte é incerto, mas a discussão está em pauta e nasce o sonho de equipes e categorias não-binárias.

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Não existe argumentação contra estatísticas. Mulheres ganham menos que homens, e no esporte não poderia ser diferente. Com menos investidores, menos visibilidade na mídia e menos prestígio, é difícil criar referências para que meninas se enxerguem no espaço do esporte, perpetuando papeis de gênero.

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