Moda não-binária: panorama histórico contextualiza tendência

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A maneira como a indústria lida com o fim dos estereótipos de gênero pode variar, mas é fato que será preciso aprender para continuar no jogo. Quais são as marcas que protagonizam essa evolução?

por Marina Colerato capa Antoine Caecke

Você já prestou atenção em como as roupas são apresentadas em filmes de ficção científica? Pense, por exemplo, no figurino de Matrix ou Aeon Flux e você notará que as barreiras entre feminino e masculino ficam embaçadas. Para Hollywood, quando o assunto é a maneira como nos vestiremos no futuro, não há grandes distinções entre moda masculina e moda feminina, assim como acontecia até o período vitoriano no Ocidente, onde homens e mulheres vestiam praticamente as mesmas roupas.

O binarismo de gênero na moda foi selado durante a Era Industrial, quando homens começaram a usar ternos e abandonaram as cores e as mulheres continuaram presas ao vestido. Para elas, usar calças era absolutamente escandaloso e a diferença nos trajes começou a representar a diferença dos sexos, inclusive na Ásia.

“Essas diferenças nas roupas vieram para simbolizar a suposta diferença nos sexos: homens, assim como ternos, eram sérios e práticos; mulheres, assim como vestidos com babados, eram frívolas e superficiais.” — Marc Bain

Ann Kroon
Ann Kroon

Foi com o movimento feminista e a luta pelo sufrágio feminino, no final do século XIX, quando essa distinção começou a ser questionada pelas mulheres. Amelia Bloomer, sufragista, editora e ativista, desafiou o binarismo de gênero na moda e a sociedade ao usar calças, até então consideradas propriedade exclusiva do homem. Desde então, em períodos espaçados, e normalmente relacionados à ascensão do movimento feminista, conseguimos observar a tentativa de romper com esses códigos sociais tão fortemente representados pelas roupas.

O desafio às normas de gênero hoje é uma continuação da luta por objetivos inalcançados dos anos 1960 e 1970. Movimentos de direitos sociais, o movimento gay, a comunidade LGBTQ e a contracultura sempre questionaram papéis de gênero e, consequentemente, isso tem a ver com como performamos gênero ou, basicamente, como nos vestimos para representar o gênero que nos foi “dado”.

A indústria da moda e o gênero

Na história da moda, alguns estilistas foram subversivos em questionar essas normas. Jean Paul Gaultier, por exemplo, causou alvoroço ao colocar homens de saias nas passarelas pela primeira vez, em 1985. Ann Demeulemeester, Martin Margiela, Comme des Garçons e Helmut Lang levantaram a pauta da androginia durante os anos 1980 e 1990.

O legado de Gaultier foi tema de exposição no Grand Palais de Paris em 2015. Foto: Pierre et Gilles
O legado de Gaultier foi tema de exposição no Grand Palais de Paris em 2015. Foto: Pierre et Gilles

“Eu não acredito que tecidos tenham gênero.” — Jean Paul Gaultier

Atualmente, Hood By Air, Rick Owens, Saint Laurent e Gucci são algumas marcas que incorporam este debate. Essa última apresentou sua primeira coleção de menswear sob o comando de Alessandro Michele como diretor criativo, em março de 2015, com padrões, formas e adereços considerados femininos. O passo foi bem recebido, especialmente por se tratar de uma marca tradicional que, temporada após temporada, apresentava ternos, ternos e mais ternos.

Na esquerda, passarela de Verão 1997 de Ann Demeulemeester. Na direita, moda andrógena de Helmut Langem em 1994.
Na esquerda, passarela de Verão 1997 de Ann Demeulemeester. Na direita, moda andrógena de Helmut Langem em 1994.
Jean Paul Gaultier, Inverno 2012
Jean Paul Gaultier, Inverno 2012
Verão 2016 de Maison Martin Margiela pelas mãos de John Galliano: androginia clássica da marca nos anos 1980 e 1990.
Verão 2016 de Maison Martin Margiela pelas mãos de John Galliano: androginia clássica da marca nos anos 1980 e 1990.
Verão 2016 de Hood By Air e Inverno 2016 de Rick Owens
Verão 2016 de Hood By Air e Inverno 2016 de Rick Owens
Primeira coleção de Alessandro Michele para Gucci
Primeira coleção de Alessandro Michele para Gucci

Diferentes marcas tentam quebrar o binarismo, inclusive quando o assunto são modelos. Além de figuras masculinas estreando em campanhas femininas, cada vez mais notamos modelos de gênero fluido, como Goan Fragoso e Elliot Saillors, no casting de desfiles e campanhas. Dias depois do atentado à boate LGBTQ em Orlando, Marc Jabocs lançou a primeira imagem de uma campanha com o (agora ex) casal queridinho da moda Carlos Santolalla e John Tuite, conhecidos como “o primeiro casal gay” a assinar com uma agência de modelos.

Carlos Santolalla e John Tuite na campanha de Marc Jacobs
Carlos Santolalla e John Tuite na campanha de Marc Jacobs
Goan Fragoso transita entre papéis de gênero
Goan Fragoso transita entre papéis de gênero
Elliot Saillors: de mulher sexy ao tomboy
Elliot Saillors: de mulher sexy ao tomboy

Mesmo que existam milhas de distância entre a fantasia da passarela e a realidade das lojas, seja de luxo ou popular, varejistas tomam atitudes para aproximar-se desta tendência. Em iniciativa pioneira, a Selfridges criou em 2015 um departamento onde as roupas não eram separadas por gênero. Marcas de fast-fashion como C&A e Zara também entraram no debate e levantaram questões sobre até que ponto estratégias publicitárias podem ser consideradas sinceras e benéficas ao assunto. Para a comunidade LGBTQ, a absorção do tema pela indústria de maneira massificada pode ser problemática, mas cumpre o papel de colocar o assunto em perspectiva.

“Por uma lado, linhas sem gênero na moda mainstream encorajam todo mundo a aceitar formas mais diversas de expressão de gênero, o que cria uma mudança positiva para a comunidade queer. Por outro lado, a indústria parece focada em estilos masculinos para todos os gêneros, apagando identidades femininas e perpetuando um padrão responsável por dizer que a feminilidade é muito restrita e apenas aceitável para um escopo limitado de identidades.” — Anita Dolce Vita

O ponto crucial é gerar debate e não devemos esperar que ele cesse. É uma reinvindicação social refletida na moda. A maneira como a indústria lida com tal demanda pode variar de acordo com cada público alvo, mas é fato que ela terá que aprender para continuar no jogo.

A importância da moda queer e das marcas independentes

Enquanto a indústria ainda procura caminhos, a moda queer e agender já pega fogo há tempos nas cenas underground das capitais. Paralelamente à semana de moda de Nova Iorque, em setembro de 2015, o maior evento de moda queer do mundo, intitulado Verge, apresentou 8 designers independentes que desafiam o binarismo de gênero. O evento ganhou muita atenção de mídia, principalmente porque aconteceu no meio da semana de moda oficial, na qual a androginia foi apontada como a principal tendência.

Katya Moorman - VERGE Fashion Show 2015
Katya Moorman – VERGE Fashion Show 2015

No Brasil, este cenário também floresce nas mãos das pequenas marcas e designers independentes. Novas marcas se comprometem em servir homens, mulheres ou indefinidos da mesma maneira e com peças curingas.

Tricoma é uma marca paulista que produz tricôs sob encomenda. São poucos modelos, numerados, pensados para servir diferentes tipos de corpos, sem delimitação de gênero. A Tricoma faz questão de trabalhar com cor em seus designs, reafirmando que uma ampla cartela não deve ser opção exclusiva às mulheres.

Tricoma
Tricoma

BEN reforçou seu posicionamento como marca disposta a servir a gêneros fluídos na edição de Verão 2017 da Casa de Criadores. Com estética ímpar e pé fincado na vanguarda, a marca mistura processos tecnológicos e artesanais para criar peças destinadas aos jovens que não se sentem mais na obrigação de performar um gênero específico.

BEN

Trendt já é conhecida no mercado por trafegar por uma rota diferente, a rota minimalista. Essencialmente, a moda da Trendt é designada como feminina, mas Renan Serrano, designer da marca, desenvolve peças indiscutivelmente agênero como camisetas, e propõe questionamentos por meio do seu próprio modo de vestir.

“Nesse novo modo de vestir, eu gero neutralidade com um visual sem precedentes, o que faz com que as pessoas queiram se aproximar e saber quem sou. Tomo cuidado para respeitar o espaço visual das pessoas, usando uma roupa neutra que, com alguns detalhes de inovação, influencia o inconsciente e mostra novas formas de pensar.” — Renan Serrano

Camiseta pannels da Trendt
Camiseta pannels da Trendt

Beira propõe amplitude. Uma moda limpa, mas expansiva nas proporções capazes de deixar corpos escondidos, em segundo plano. A marca nasceu com peças que chamava de unissex e, hoje, aproveita a versatilidade deste conceito.

Beira
Beira

O futuro, a fluidez de gênero e a importância da moda infantil

Quando se fala em fluidez de gênero, ainda há divisão de opiniões, reflexo de certo conservadorismo: de um lado, gigantes como Luisa Via Roma acreditam que espaços agêneros ou lojas agênero serão o futuro, enquanto outros, como Neiman Marcus, nem pensam no assunto.

A história mostra que o binarismo é arbitrário: depende da vontade daquele que age. É um desafio ampliar a compreensão da sociedade de que não há distinções estéticas entre gêneros. Repensar o segmento infantil é bastante estratégico neste sentido e muitas empresas já quebram as diferenças entre as roupas de meninos e de meninas.

Até antes do século 20, crianças de até 6 anos eram normalmente vestidas de branco, por questões de praticidade. A distinção de cores e formas começou a ganhar campo em 1918. Jo B. Paoletti, historiadora americana e autora do Pink and Blue: Telling the Girls From the Boys in America, relembra que propagandas da época diziam que azul era uma cor mais sutil e, por isso, mais indicada para meninas, e rosa uma cor mais forte e austera, sendo assim indicada para meninos. Foi em 1940 que aconteceu a inversão das cores, e o rosa passou a ser cor de menina e o azul cor de menino.

Atualmente, o mercado infantil aponta para marcas que libertam as crianças (e as cores) da generificação das roupas. Quirkie Kids lançou a campanha #setcolorsfree (“liberte as cores”); Shava, oferece peças com estampas “neutras” como astronautas, ninjas e dinossauros; Iglou Kids e Matiz, no Brasil, também se direcionam ao assunto.

Na esquerda camisetas de astronauta da Shava. Na direita, meninos de rosa na Quirkie Kids.
Na esquerda camisetas de astronauta da Shava. Na direita, meninos de rosa na Quirkie Kids.
Iglou
Iglou

Geralmente criadas por pais decepcionados com a moda infantil, essas empresas são ativas na transformação do pensar moda, roupa e gênero para futuras gerações. Elas propõem reflexão para outros pais e responsáveis ao oferecer um vestir baseado no universo infantil, e não nos desejos ou concepções dos adultos.

Para que essa moda menos endurecida por normas estéticas seja vista além das passarelas, precisamos andar a passos largos. No que tange a indústria da moda, não há dúvidas de que seu papel sempre foi, é, e será, de coadjuvante; acompanhante das mudanças vindas das pessoas. Enquanto a sociedade questiona imposições e protagoniza a evolução, a moda observa, entra na dança e segue o fluxo. Vamos mostrar para eles que homens de saia, mulheres de terno e fluidez de gênero — e, acima de tudo, liberdade — representam o futuro da moda.

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O binarismo de gênero na moda foi selado durante a Era Industrial, quando homens começaram a usar ternos e abandonaram as cores e as mulheres continuaram presas ao vestido. Desde então, em períodos espaçados, e normalmente relacionados à ascensão do movimento feminista, conseguimos observar a tentativa de romper com esses códigos sociais tão fortemente representados pelas roupas.

Na história da moda, alguns estilistas foram subversivos em questionar essas normas. Jean Paul Gaultier, por exemplo, causou alvoroço ao colocar homens de saias nas passarelas pela primeira vez, em 1985. Ann Demeulemeester, Martin Margiela, Comme des Garçons e Helmut Lang levantaram a pauta da androginia durante os anos 1980 e 1990. Atualmente, Hood By Air, Rick Owens, Saint Laurent e Gucci são algumas marcas que incorporam este debate.

Mesmo que existam milhas de distância entre a fantasia da passarela e a realidade das lojas, seja de luxo ou popular, varejistas tomam atitudes para aproximar-se desta tendência. O ponto crucial é gerar debate e não devemos esperar que ele cesse. É uma reinvindicação social refletida na moda. A maneira como a indústria lida com tal demanda pode variar de acordo com cada público alvo, mas é fato que ela terá que aprender para continuar no jogo. Repensar o segmento infantil é bastante estratégico neste sentido e muitas empresas já quebram as diferenças entre as roupas de meninos e de meninas.

Para que essa moda menos endurecida por normas estéticas seja vista além das passarelas, precisamos andar a passos largos. No que tange a indústria da moda, não há dúvidas de que seu papel sempre foi, é, e será, de coadjuvante; acompanhante das mudanças vindas das pessoas. Enquanto a sociedade questiona imposições e protagoniza a evolução, a moda observa, entra na dança e segue o fluxo. Vamos mostrar para eles que homens de saia, mulheres de terno e fluidez de gênero — e, acima de tudo, liberdade — representam o futuro da moda.

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