Primavera Sound: um festival de música
O Primavera Sound Barcelona é um festival de música. Com a fama conquistada pelo evento espanhol, pode parecer uma colocação um tanto óbvia, mas não é. Vivemos não apenas a era dos festivais, mas, acima disso, a era das experiências. Hoje, um festival de música de sucesso hoje é mais que os shows. O sucesso está diretamente relacionado com a escolha do local, o formato, as atrações paralelas de arte, gastronomia e outras atividades. Mais do que uma escalação, os frequentadores estão atrás de uma experiência completa. Já existem até festivais em que a ordem dos fatores foi invertida, eventos de gastronomia em que há shows. Não é o caso do Primavera Sound, que se vende em cima da música, sem propagandear demasiadamente o ambiente ou outras atividades. Chega a fazer falta uma área de convivência além das praças de alimentação, que terminavam a noite bastante sujas.
O miolo do festival se dá de quinta a sábado no Parc del Forum, mas há ainda shows gratuitos no circuito Primavera a La Ciutat, que se iniciam na quarta anterior e encerram no domingo, como contrapartida aos aportes feitos pela prefeitura da cidade. Essas apresentações acontecem no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB, com um palco patrocinado pela bebida Martini), nas salas Apolo, Barts e Teatre. Há ainda algumas noitadas relacionadas ao Primavera pelos clubes de Barcelona, e o PrimaveraPro, evento nos moldes do SxSW que promove palestras, oficinas e mesas de discussão para aproveitar a reunião de pessoas importantes da indústria — seja artistas, empresários, agentes ou imprensa. Isso faz com que a cidade esteja ainda mais envolvida com o evento, ampliando seu alcance e consolidando a marca.
Entre as 130 atrações, com destaque para o rock e para o pop, apresentaram-se Radiohead, LCD Soundsystem Tame Impala, Brian Wilson, Sigur Rós, Beach House,The Last Shadow Puppets, LCD Soundsystem, PJ Harvey, Air, Beirut, Goat, Action Bronson, John Carpenter Alex G, Andy Shauf, Nao, Kamasi Washington, Orchestra Baobab, Mbongwana Star, Moses Sumney, entre muitos outros. Representando o Brasil, os grupos O Terno, Aldo The Band e Inky tocaram num dos palcos secundários, com público diminuto, porém atento.
Apesar do som estar sempre limpo, foi comum a reclamação sobre volume baixo (principalmente nos palcos principais) e de vazamento de um palco para o outro. Além disso houve problemas técnicos, incluindo apagões, durante os shows do Tame Impala, Steve Gunn, Action Bronson e do diretor cult John Carpenter, que, novato em performances ao vivo (foi o segundo show de sua vida), apresentou trilhas de seus filmes. Do ponto de vista do frequentador, o chão duro e as muitas ladeiras do espaço dão uma canseira braba no público por conta das longas caminhadas. Mas tudo bem. Afinal, o Primavera Sound é um festival de música — custe o que custar. E o que parece ser tão óbvio, acaba sendo um grande trunfo. Para entender melhor por que, vamos voltar um pouco no tempo.
Como chegamos aqui
Dos primórdios do Festival of Britain, em 1951, aos festivais anti-establishment, como o norte-americano Woodstock, os atuais encontros musicais que acontecem em todo o mundo viraram um mercado gigantesco. Na realidade, como dito no JWT, a palavra “festival” já virou um termo guarda-chuva, que por si só não define muita coisa. Em comum, a tarefa de oferecer uma experiência. De acordo com um estudo da Harris Poll e Eventbrite, 78% dos millenials preferem pagar por uma experiência do que por um bem material.
Antes menores e nichados, com poucas excessões em escala gigante — caso do inglês Glastonbury e seus 135 mil visitantes anuais, um rito de passagem dos jovens britânicos —, na última década festivais de música tornaram-se uma epidemia global. Praticamente todo grande centro hoje sedia um evento, normalmente durante o verão, seja proprietário e exclusivo, seja alugando uma marca conhecida, como fazem São Paulo e Santiago com suas versões do Lollapalooza.
Se no passado esses eventos reuniam dezenas de milhares de fãs, hoje muitos dos festivais espalhados pelo mundo passam da centena de milhares. Em menos de uma década, o Coachella passou de um evento de dois dias de duração para 60 mil pessoas cada, para três dias com público diário de 90 mil, e recentemente foi expandido com um repeteco idêntico no final de semana seguinte, tornando-se provavelmente a marca mais conhecida do planeta no setor, atualmente. No caso do Primavera Sound, a edição de 2016 reuniu, segundo a organização, 200 mil pessoas durante cinco dias em seus diversos eventos em Barcelona, com público de 54 países.
Ainda que o investimento e os riscos sejam altíssimos, o negócio é atraente. O passe para os três dias do festival californiano custa em média 300 dólares, gerando uma arrecadação estimada total de 54 milhões de dólares. E isso apenas com a venda de ingressos. Há ainda os patrocinadores e a venda de comida e bebida, normalmente a preços exorbitantes, gerando ainda mais receita.
Se antes ir a um festival era coisa para aficcionados por bandas e estilos específicos, hoje esses eventos envolvem todo tipo de música e todo tipo de gente, incluindo pessoas que nunca ouviram falar na maior parte das bandas se apresentando. Ir a festivais está na moda.
Desde 2013 o quadro “Lie Witness News”, do programa Jimmy Kimmel Live, ficou popular por perguntar ao público de festivais opiniões sobre bandas que não existem.
Música vs. Experiência
Ao valorizar mais a experiência, porém, um festival de música corre o risco de se descaracterizar. Tem se tornado uma constante a reclamação sobre a massificação de festivais como Coachella ou mesmo Burning Man, acusados de terem cedido aos interesses comerciais, tentando agradar um público cada vez mais diverso. Não por acaso, existem já diversos eventos se afastando da música e se especializando justamente no aspecto da experiência.
O Lighting In A Bottle acontece no parque de San Antonio, na Califórnia. Em sua escalação há, além das bandas, seminários com gurus de consciência e bem estar interno, reiki, shamans, oficinas de pintura, yoga, fabricação de elixirs, culinária, espetáculos burlescos e atividades para crianças.
O Primavera Sound parece protegido dessa tendência, pelo menos por enquanto. Apesar de acontecer na beira da praia e em Barcelona, não é um festival fotogênico: o Parc del Fórum é puro concreto. O ambiente não estimula selfies, não inspira fotos “artísticas” ou serve de fundo para ensaios de moda idealizados. Os frequentadores não têm preocupação com o look do dia. Não há sequer um estilo de roupa “apropriado” ao evento. No olhômetro, a frequência do festival é majoritariamente masculina e mais velha. Sem celebridades a vista, vagando pelo Parc del Fórum a cena mais comum são grupos de trintões, de camiseta preta, assistindo aos shows.
Quebrando a lógica “dos jovens para os jovens”, ao escalar Radiohead, LCD Soundsystem, Suede e Brian Wilson como grandes nomes do festival, o Primavera Sound perde um pouco o apelo para a molecada de 20 e poucos anos que frequenta festivais atrás de sons contemporâneos e novidades pop da estação. A música eletrônica até tem espaço, porém sem destaque e com uma escalação longe do radiofônico.
No Coachella, por exemplo, pode se dizer que o chamado EDM foi aos poucos engolindo o festival. A procura pela tenda eletrônica Sahara, até então a maior do festival, passou a ser tanta nos últimos anos que foi criada uma quarta tenda, ainda maior, exclusivamente dedicada ao EDM, além de um clube, com direto a piso de madeira, ar condicionado e escuridão completa para os que querem fugir do ensolarado deserto californiano. No Lollapalooza, também, atrações eletrônicas ocupam o palco principal em horários nobres.
No Primavera Sound, não. As atrações eletrônicas tendem mais ao experimental, incluindo nomes como Pantha Du Prince, Floating Points, Holly Herndon, DJ Koze e Moderat, que se apresentam já tarde da madrugada, nos palcos menores, com público já consideravelmente reduzido.
Marcas nos festivais
A presença das marcas é forte de forma agressiva. Cada palco do Primavera Sound leva o nome de um patrocinador, entre eles, Heineken, H&M, Rayban, Adidas, Pitchfork. Mas, de todos esses, o único que realmente integra batismo e escalação é o Pitchfork, que segue a linha estética defendida pela polêmica publicação (que, aliás, realiza dois festivais por conta própria, o Pitchfork Festival, em Chicago e Paris). Os outros patrocinadores poderiam inverter os palcos que nomeiam e não faria a menor diferença na apresentação. Resta apenas um palco com nome próprio, Primavera, provavelmente apenas até alguma marca resolver enxergar a oportunidade e tascar seu nome nele.
Tanto a Heineken quanto a Rayban realizaram ativações com palcos especiais. A cervejaria criou o Hidden Stage, para o qual se necessitava ingressos especiais adquiridos com antecedência no próprio festival. A marca de óculos montou um palco pequeno perto da praça de alimentação, onde artistas faziam sets acústicos. A fábrica de pneus Firestone também montou um palco com apenas um show por dia. H&M e Adidas criaram espaços que envolviam ativações com fotos e redes sociais. No espaço Beach Club, do outro lado do Parc del Fórum, havia a casa Bacardí e a pista de dança Bower & Wilkins Sound System, patrocinado respectivamente pela marca de bebidas e de equipamentos de som para audiófilos.
Ainda que esteja na contramão do que se vê acontecendo com outros festivais, cada vez mais protegendo suas propriedades, no Brasil, historicamente a tendência é ainda pior, com alguns dos mais memoráveis festivais tendo seu próprio nome relacionado a alguma marca (vide Hollywood Rock, Free Jazz Festival, TIM Festival, Vivo Open Air, Nokia Trends, Planeta Terra etc.). Nomear os palcos, de certa forma, parece mais intrusivo (ou valioso, dependendo de que lado da mesa você está sentado) do que dar nome ao festival.
De lojas, fora as barraquinhas de comida, bebida e food trucks, no Primavera havia apenas algumas tendas vendendo discos, pôsteres e camisetas de bandas. Alinhado com o conceito do evento, faz sentido. O foco é na música o que, curiosamente, coloca o Primavera Sound no caminho inverso da maior parte dos festivais do mundo. Vai ver é exatamente por isso que ele vem se destacando, ao menos com uma parcela do público. O próximo desafio dos festivais pode ser justamente combinar as duas coisas e oferecer uma experiência complementar sem interferir na música.
O Primavera Sound Barcelona é um festival de música. Com a fama conquistada pelo evento espanhol, pode parecer uma colocação um tanto óbvia, mas não é. Vivemos não apenas a era dos festivais, mas, acima disso, a era das experiências. Hoje, o sucesso de um festival de música está diretamente relacionado com a escolha do local, o formato, as atrações paralelas de arte, gastronomia e outras atividades. Mais do que uma escalação, os frequentadores estão atrás de uma experiência completa. Não é o caso do Primavera Sound, que se vende em cima da música, sem propagandear demasiadamente o ambiente ou outras atividades.
Se antes ir a um festival era coisa para aficcionados por bandas e estilos específicos, hoje esses eventos envolvem todo tipo de música e todo tipo de gente, incluindo pessoas que nunca ouviram falar na maior parte das bandas se apresentando. Ir a festivais está na moda.
Ao valorizar mais a experiência, porém, um festival de música corre o risco de se descaracterizar. Tem se tornado uma constante a reclamação sobre a massificação de festivais como Coachella ou mesmo Burning Man, acusados de terem cedido aos interesses comerciais, tentando agradar um público cada vez mais diverso. Não por acaso, existem já diversos eventos se afastando da música e se especializando justamente no aspecto da experiência.
O Primavera Sound parece protegido dessa tendência, pelo menos por enquanto. Apesar de acontecer na beira da praia e em Barcelona, não é um festival fotogênico: o Parc del Fórum é puro concreto. Os frequentadores não têm preocupação com o look do dia. No olhômetro, a cena mais comum são grupos de trintões, de camiseta preta, assistindo aos shows. A música eletrônica, que engole muitos festivais, até tem espaço no Primavera, mas com artistas mais alternativos e em horários e palcos menos nobres.
A presença das marcas é forte de forma agressiva: cada palco do Primavera Sound leva o nome de um patrocinador. De lojas, fora as barraquinhas de comida e food trucks, no Primavera havia apenas algumas tendas vendendo discos, pôsteres e camisetas. Alinhado com o conceito do evento, faz sentido. O foco é na música o que, curiosamente, coloca o Primavera Sound no caminho inverso da maior parte dos festivais do mundo. Vai ver é exatamente por isso que ele vem se destacando. O próximo desafio dos festivais pode ser justamente combinar as duas coisas e oferecer uma experiência complementar sem interferir na música.
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