Cultura pop e a redenção do gênero
Elke Maravilha é homem. Ou, ao menos, é o que diz a primeira sugestão de pesquisa do Google para a artista que, designada mulher ao nascer, dispensa qualquer definição nos dias de hoje. Elke é um exemplo da fluidez de gênero, assim como o Google é da necessidade que o senso comum ainda tem de enquadrar pessoas em padrões binários tradicionais: homem e mulher. Felizmente, a cultura pop de Elke e outros remexe esses conceitos polarizados e os transforma em borrões de uma sociedade velha.
A falta de informação e o preconceito da sociedade acerca do assunto pode levar pessoas transgêneras ou gender fluids a uma severa infelicidade e vazio. E a cultura pop — seja nos retratos andróginos de Andy Warhol ou quando Madonna nos manda “expressar nosso amor como ele é” em Express Yourself — tende a incendiar mudanças, motivando pessoas a vozear suas aceitações.
Mas há um lado invisível e menos romantizado. Alguns estão tão inseridos em seus contextos que não permitem mudanças, que acabam se enquadrando nas máscaras normativas que a sociedade lhes impõe. É para estes que o pop se torna menos um pilar coadjuvante de suas próprias lutas, para se tornar a sobrevivência em si. Não podendo moldar-se, vestir-se e agir como querem, é nas personas de certos ícones que traçam idealizações e tomam suas pílulas secretas de transgressão para continuar vivendo.
A cultura de massa que expõe nuances de gênero é o contato mais próximo que muitas pessoas têm com seus universos ideais. Quando as portas não podem ser escancaradas, tangenciar o mundo utópico da libertação já alivia o cheiro de mofo dentro dos armários fechados.
Superficializada ou não, a mensagem de autoaceitação tem se registrado nos anais da sociedade por mérito da cultura pop. Seja por existir uma real intenção de mudança, seja simplesmente porque vende, este ideal de empoderamento entra nas veias da indústria do entretenimento e se difunde por aí. Antes erudito e distante da realidade, tal conceito passa a ser massificado, atingindo mais pessoas, ainda que menos profundamente.
A apresentadora de televisão Ellen DeGeneres, por exemplo, com seus ternos e tênis, falando abertamente sobre sua homossexualidade, é muito famosa e querida pelo público norte-americano. Ela é um respiro para quem só enxerga mulheres segundo o estereótipo da moça feminina de saia e salto alto.
A arte popular, com todas as suas indefinições, exime-se da obrigação de possuir um papel social ativo. Mas, intencionalmente ou não, acaba por provocar transformações.
Quando uma situação é retratada em uma peça de teatro ou em um filme, nos colocamos no lugar do personagem e vivemos aquele momento com ele. Assim, visitamos lugares psicológicos, como raiva, amor, felicidade, sem a necessidade de aquilo ser real. Com o gênero acontece o mesmo. E aí, a indústria do entretenimento assume um papel de preenchimento, pois, mesmo com todas críticas que podem ser feitas, ela ajuda a suprir o vazio de não poder expressar socialmente o que se é por dentro. A música pop, a cena Drag e as inserções de gender-fluids na grande mídia, acabam por suprir parte das carências de um grupo que sempre se viu podado pelos padrões patriarcais, além de fomentarem uma sociedade emergente mais democrática e livre.
“É a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser.” —
Assim sendo, a cultura pop liberta estes atos repetidos, ainda que limitadamente, permitindo uma performance menos condicionada do gênero padronizado.
Gênero para quem?
No que tange às nuances comportamentais de uma maneira mais prática, no entanto, todo esse escapismo pode atuar não somente como um alimento, mas também como fator de isolamento. Levar essa vida dicotômica, em que de um lado serve-se aos padrões sociais e do outro consome-se uma cultura que vai contra esses padrões, pode criar uma ilha de segurança, acomodação e reclusão social. RuPaul’s Drag Race, reality show muito assistido e debatido pela cena jovem LGBT, é um nome estranho para a maior parte da sociedade brasileira, bem como a própria cena drag nacional, o que é um reflexo do próprio isolamento da comunidade LGBT em si.
As questões de gênero ainda são tão pouco discutidas que a maioria dos transgêneros não conseguem nomear o que sentem durante muito tempo de suas vidas. Sabem menos ainda seus pais, amigos e pessoas próximas, que não veem ou optam por ignorar o que se passa nas cabeças precocemente preocupadas desses. Embora a medicina e a psicologia sejam importantes, o apelo da cultura pop vai mais direto ao ponto.
Afinal, muitos bloqueios sociais acontecem justamente por causa da racionalidade, da objetividade e da frieza, abordagens típicas do meio científico. Talvez a subjetividade de uma música, de um filme, de uma fotografia consiga se colocar melhor em diálogo com as manifestações e as necessidades do ser.
Se hoje a questão avança, é graças à internet. É ela que reverbera esses discursos e encoraja pessoas a se assumirem, sendo, em seguida, retroalimentada por essas experiências. Afinal, uma pessoa empoderada é inspiração para outras pessoas que se espelhem. O benefício que as mudanças provocadas pela tecnologia tem promovido é real. Mas, enquanto ainda estão discutindo (em pleno século XXI) se psicólogo pode ou não fornecer cura trans, crianças e jovens regozijam nas portas trancadas de seus quartos, ouvindo Lady Gaga, bradando que são “lindas do seu jeito”, e vivendo as libertações televisionadas que se tornam suas realidades, pelo menos durante o breve período de tempo em que a música toca.
A falta de informação e o preconceito da sociedade acerca da fluidez de gênero pode levar pessoas transgêneras ou gender fluids a uma severa infelicidade e vazio. E a cultura pop tende a incendiar mudanças, motivando pessoas a vozear suas aceitações.
Mas há um lado invisível e menos romantizado. A cultura de massa que expõe nuances de gênero é o contato mais próximo que muitas pessoas têm com seus universos ideais. Quando as portas não podem ser escancaradas, tangenciar o mundo utópico da libertação já alivia o cheiro de mofo dentro dos armários fechados.
A arte popular, com todas as suas indefinições, exime-se da obrigação de possuir um papel social ativo. Mas, intencionalmente ou não, acaba por provocar transformações. Quando uma situação é retratada em uma peça de teatro ou em um filme, nos colocamos no lugar do personagem e vivemos aquele momento com ele. Assim, visitamos lugares psicológicos, como raiva, amor, felicidade, sem a necessidade de aquilo ser real. Com o gênero acontece o mesmo.
Talvez a subjetividade de uma música, de um filme, de uma fotografia consiga se colocar melhor em diálogo com as manifestações e as necessidades do ser.
Comente