Selfie e a politização do corpo feminino
Uma das características que definem o período pós-internet que vivemos é que as pessoas se apropriam da tecnolgia de forma confiante e, assim, passam a se expressar em narrativas de identidades até então marginalizadas. Selfies ressignificam o corpo feminino e o que era motivo de vergonha passa a ser orgulho.
Mas o que diferencia o nu do nude? O que torna uma imagem política ou sexual? E, sobretudo, como celebrar a diferença sem cair em uma objetificação repaginada? Um novo feminismo, protagonizado por mulheres que cresceram aprendendo a ser críticas dos próprios corpos e dos corpos das outras mulheres, usa da sororidade, do humor e da sexualidade como plataforma de combate.
A revelação do feminismo digital
Em 1964, o sociólogo McLuhan postulou que “o meio é a mensagem”. Segundo essa ideia, a mudança em um meio de comunicação é mais significativa que a mudança no conteúdo, impactando naquilo que somos e pensamos. Ao longo do avanço exponencial das tecnologias de comunicação, criam-se novos paradigmas sobre a representação que cada meio apresenta. A era digital, por exemplo, permitiu explorar sob novas perspectivas temas como sexo, desejo e objetificação, com uma visibilidade bastante ampliada.
“Visibilidade é fundamental nesta era, pois vivemos em um mundo de imagens. Se você não se vê representado, você não se sente parte do cenário. É como se você nem existisse.” — , artista e fotógrafa
Smartphones e mídias sociais permitiram o surgimento de múltiplos formadores de opinião (para bem e para o mal), e deram às mulheres novas formas de conexão para falarem entre si e diretamente sobre questões respectivas ao seu gênero. A possibilidade que transforma qualquer um em produtor de conteúdo gera como produto um efeito de desinibição online, pois permite a comunicação e auto-expressão entre pessoas que normalmente seriam relutantes em revelar seu lado mais íntimo.
Historicamente, as mulheres sempre foram representadas a partir da ótica masculina. Porém, vê-se hoje um fenômeno proporcionado pela tecnologia, em que as mulheres (re)tomam a propriedade de sua imagem e apresentam-na a partir de seu próprio entendimento.
Compreendendo que toda tecnologia, em sua essência, carrega ideologia, a partir do momento em que as câmeras estão nas mãos das mulheres pode-se enxergar uma capacidade transformativa da representação feminina.
O que diferencia o nu do nude?
Ao longo dos séculos, o corpo feminino sofreu diversas pressões para se adequar, tanto no sentido comportamental quanto esteticamente. A arte foi um importante vetor nessa tarefa. A exposição da nudez feminina funcionou como uma maneira de controlar e determinar a sexualidade e os comportamentos das mulheres.
O Nascimento de Vênus, por exemplo, é uma obra apresentada ostensivamente na nossa cultura visual, ícone das significações do universo feminino. Mas repare: ela foi pintada por um homem. O olhar masculino, hoje considerado patriarcal e controlador, foi, por muito tempo, o único olhar artístico para o corpo da mulher. Pinturas europeias exploraram exaustivamente retratos da mulher como mero objeto sexual e de contemplação. Nos quadros, a mulher estava nua, mas, na vida real não havia liberdade sexual. Elas estavam resignadas ao mundo privado e sem espaço de atuação.
Ao tentar construir a identidade dos gêneros unicamente de acordo com a percepção masculina, a sociedade moderna suprimiu a autonomia feminina. Dessa tensão urge a necessidade de se contrapor às representações fixadas na tradição histórica, legitimando o protagonismo feminino na construção de suas próprias narrativas.
Com o advento de uma cultura digital, em que imagens são produzidas de forma massiva, a autorrepresentação do corpo feminino através de selfies e nudes rompe com os velhos protocolos artísticos e culturais. Mais que ferramentas de visibilidade, são mecanismos políticos frente à histórica — e ainda opressora — má representação da mulher.
“Se a história do nu feminino é definida como a representação das mulheres em uma sociedade patriarcal, a arte feminista tem se dedicado a desvirtuar este poder, afirmando o direito à autorrepresentação.” — Lynda Nead, historiadora de arte
As redes sociais tornaram-se espaço de curadoria de identidades contemporâneas, ao mesmo tempo que validam representações do mundo social. Novos dilemas aparecem: forma-se o paradoxo dos limites de intimidade. Existe a exposição consciente da ideia de corpo que quer se passar, mas também há medo de exposição, o que faz com que a circulação de nudes aconteça em espaços reservados e exclusivos entre amigas.
Etimologicamente, “nu” implica vulnerabilidade, falta de proteção. O nude, ao contrário, é uma categoria poderosa. Muito além da sexualidade, nudes fazem parte de um processo amplo de celebração da auto-imagem, e revelam a importância da jornada individual no processo de empoderamento coletivo.
Capitalização do empoderamento
Se ao longo da história da arte as mulheres foram consagradas como objetos e ignoradas como sujeito, na mídia contemporânea isso não é muito diferente. A representação da mulher segue à risca o papel imposto pelo olhar masculino, geralmente hipersexualizado e com um padrão de sexualidade bem definido, agradável aos homens. Mas todas têm o direito de se sentir sensuais, sem sofrer ofensas.
Capitalizar o discurso feminista através de narrativas de empoderamento que reforçam os mesmos padrões não gera transformação. Dar espaço para novos protagonismos é a verdadeira fonte de mudança.
Pensando nisso, quão empoderador pode ser o nude da Kim Kardashian, a rainha dos selfies? Ironicamente, seu império foi construído com lucros vindos diretamente da manutenção de padrões de beleza irreais. Sim, ela é o padrão de beleza. Mas, antes de tudo, ela é mulher. E isso é especialmente significativo pensando que, se hoje na mídia a sexualização passiva é incentivada, a sexualização ativa da mulher ainda é condenada.
A reverberação desse tweet tomou proporções enormes, motivando um posicionamento da celebridade:
“Eu sou empoderada pelo meu corpo. Eu sou empoderada pela minha sexualidade. Eu sou empoderada por me sentir confortável em minha própria pele. Eu sou empoderada por mostrar minhas imperfeições ao mundo sem medo do que vão falar de mim. E eu espero que através desta plataforma eu possa encorajar o mesmo empoderamento para garotas e mulheres de todo o mundo […]”
Além da hiperexposição consensual que norteia sua vida, Kim já foi também vítima de revenge porn e teve imagens suas distribuídas na rede contra sua vontade. Mas, ao escolher postar um nude em suas redes sociais, ela desafia a norma e reforça o controle sobre sua própria imagem e sexualidade.
Contudo, é importante que o debate se concentre menos em pessoas específicas e mais sobre a sociedade como um todo. Mulheres enquanto seres individuais jamais serão livres para serem sexies, pudicas ou o que quiserem ser em uma sociedade que reivindica a posse de seus corpos. Os corpos femininos têm direito de existir em toda sua diversidade, sexual e não sexual, sem precisar da validação do outro.
A autorrepresentatividade através de nudes pode ser transformadora para mulheres que não se sentem confortáveis consigo mesmas ou não estão convencidas do poder de sua sexualidade. Existe valor no selfie criado e compartilhado online. Agora, mais do que nunca, existe a oportunidade de construir a cultura visual do amanhã, sob uma nova perspectiva — a feminina.
Historicamente, tanto na arte quanto na mídia, as mulheres sempre foram representadas a partir da ótica masculina. Porém, vê-se hoje um fenômeno proporcionado pela tecnologia, em que as mulheres (re)tomam a propriedade de sua imagem e apresentam-na a partir de seu próprio entendimento.
Com o advento de uma cultura digital, em que imagens são produzidas de forma massiva, a autorrepresentação do corpo feminino através de selfies e nudes rompe com os velhos protocolos artísticos e culturais. Mais que ferramentas de visibilidade, são mecanismos políticos frente à histórica — e ainda opressora — má representação da mulher.
A vulnerabilidade sugerida pelo “nu artístico”, que apresenta o feminino sob uma ótica masculina e castradora, opõe-se ao poder do “nude”, que desafia a norma e reforça o controle da mulher sobre sua própria imagem e sexualidade.
É importante que o debate se concentre menos em pessoas específicas e mais sobre a sociedade como um todo. Mulheres enquanto seres individuais jamais serão livres para serem sexies, pudicas ou o que quiserem ser em uma sociedade que reivindica a posse de seus corpos. Os corpos femininos têm direito de existir em toda sua diversidade, sexual e não sexual, sem precisar da validação do outro.
A autorrepresentatividade através de nudes pode ser transformadora para mulheres que não se sentem confortáveis consigo mesmas ou não estão convencidas do poder de sua sexualidade. Existe valor no selfie criado e compartilhado online. Agora, mais do que nunca, existe a oportunidade de construir a cultura visual do amanhã, sob uma nova perspectiva — a feminina.
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