A ficção como a verdadeira realidade
No início dos anos 2000, os reality shows dominaram as principais redes de TV do mundo. Observar a vida real como se fosse um espetáculo fez o público vidrar em anônimos que viravam celebridades do dia para a noite. A obsessão em discutir o cotidiano alheio rendia mais assunto do que qualquer novela.
Esse formato levou poucos anos para se desgastar. Hoje, o interesse por histórias e personagens fictícios supera todos os níveis de audiência atingidos pelos realities: a ficção tornou-se muito mais interessante do que a realidade.
A histeria em torno da fábula não é por acaso. Quando o reality show parece ter encontrado uma fórmula, seu formato cai por terra e deixa de ser natural. De espontâneo já não tem mais nada e — pior — seu roteiro é repetitivo e cansativo.
Se a ideia central do entretenimento era iludir, espera-se que essa ilusão não venha mascarada de realidade.
Voltar-se para a fantasia pode confundir-se com um desejo de desligamento do mundo real. Mas não se engane. Uma pessoa não entra no cinema para fugir da realidade, mas sim para entendê-la. A ficção sublinha o que há de mais importante e, muitas vezes, ressalta as reações humanas em situações e contextos considerados extremos.
Seriados de zumbis e vampiros, por exemplo, abordam situações irreais através de lentes cotidianas: seus roteiros falam de violência, pureza, mortalidade e, acima de tudo, relações humanas. Em The Walking Dead, as cenas com zumbis são bem menos frequentes do que as cenas que mostram como as pessoas se relacionam umas com as outras em meio a um apocalipse.
Trata-se de uma ficção cujo principal êxito, no fundo, é escancarar a realidade.
O blur entre real e imaginário
Uma das grandes mudanças comportamentais ocasionadas pelo desde seu lançamento em 2006 foi a maneira como nos relacionamos com as celebridades. Antes, o fã precisava recorrer a cartas carregadas de declarações de amor que dificilmente seriam respondidas. Hoje, fã e artista trocam tweets com a intimidade de amigos de infância. Se a comunicação horizontal deixou o mundo das celebs menos inacessível, estabelece-se também uma nova lógica entre o que é real e ficcional.
Um fenômeno recente do Reddit — rede social conhecida por ser o berço de novos comportamentos digitais — reforçou esses laços. Chamado de AMA (Ask Me Anything), trata-se de um fórum no qual qualquer pessoa pode se disponibilizar para uma sabatina virtual, respondendo perguntas sobre qualquer assunto. Os leitores votam nas perguntas mais interessantes, aumentando suas chances de serem respondidas.
Astronautas da Nasa, Barack Obama, Bill Murray, Jerry Seinfeld, John Malkovich e até funcionários do McDonald’s já participaram da brincadeira. Nestes fóruns, é comum a mistura de perguntas direcionadas para os atores e também para seus personagens, em uma amálgama de ficção e realidade.
Seguindo essa mentalidade, é natural reconhecer a interação virtual das pessoas com personagens fictícios. Afinal, narrativas fictícias podem propor realidades tão convincentes que são capazes de diluir as barreiras entre o real e a fantasia.
Na edição de 2014 do Big Brother Brasil, a atriz Tatá Werneck levou Valdirene, sua personagem na novela Amor à Vida, para viver doze horas dentro do programa — um verdadeiro limbo entre realidades. No mesmo programa, o casal #Clanessa inseriu o conceito de “shipar” no vocabulário dos brasileiros. Shipar é uma torcida quase obsessiva para que um par romântico se concretize ou se mantenha. O casal em questão geralmente tem certo grau de distanciamento de seus admiradores, por isso é comum que se trate de uma dupla de personagens fictícios ou de celebridades.
Esse jogo de realidades que sugere um blur entre real e imaginário tem gerado conteúdos interessantes, impulsionados principalmente pelo crescente fenômeno do fanfiction.
Plataformas como Youtube, Tumblr, Wattpad e Archive of Our Own já movimentam grandes quantidades de conteúdo produzido por fãs, também chamado de fancontent. Em 2013, a Amazon lançou a plataforma , cujo objetivo é ajudar ficwriters a monetizar com suas criações inspiradas em séries como Gossip Girl e The Vampire Diaries.
Nos últimos anos, filmes que nasceram a partir de artigos de não-ficção agitaram as audiências dos cinemas. Argo, vencedor do Oscar de 2013, foi desenvolvido a partir de um artigo de 2007 publicado na revista Wired; Bling Ring foi baseado em um texto da Vanity Fair.
De olho neste movimento, a start-up de jornalismo Epic Magazine, lançada em 2013, propõe desenvolver textos de não-ficção que sejam tão envolventes quanto uma boa fantasia. Contar uma notícia de forma sedutora é seu grande triunfo, vestindo fatos reais com linguagem atraente e recursos visuais sofisticados. As histórias são tão bem contadas, ilustradas e diagramadas que já poderiam ir direto para as telas. Por sinal, é essa a ambição de muitos dos autores que utilizam a plataforma.
Tudo isso não significa que está perdida a noção de distinguir o que é verdade e o que não é. Transtornos de personalidade e percepção da realidade se tornarão males mais comuns nos próximos anos, mas viver em várias camadas simultâneas ainda é uma escolha. Sobram textos dizendo que o contexto digital nos tornou mais desfocados e até mais estúpidos. O lado positivo, entretanto, é encontrar uma nova forma de olhar para o cotidiano. Afinal, a chance de viver outras possibilidades de uma mesma situação permite que ela não seja levada tão a sério. E, além do mais, a ficção é capaz de revelar o que temos de mais profundamente humano e sensível.
Hoje, o interesse por histórias e personagens fictícios supera todos os níveis de audiência atingidos pelos reality shows que dominaram a TV nos anos 2000: a ficção tornou-se muito mais interessante do que a realidade. A histeria em torno da fábula não é por acaso. Quando o reality show parece ter encontrado uma fórmula, seu formato cai por terra e deixa de ser natural.
Voltar-se para a fantasia pode confundir-se com um desejo de desligamento do mundo real. Mas não se engane. Uma pessoa não entra no cinema para fugir da realidade, mas sim para entendê-la. A ficção sublinha o que há de mais importante e, muitas vezes, ressalta as reações humanas em situações e contextos considerados extremos.
Existe um blur entre o que é real e o que é imaginário. A comunicação via , por exemplo, deixou o mundo das celebs menos inacessível, o que estabelece uma nova lógica entre o que é real e ficcional. Seguindo essa mentalidade, é natural reconhecer a interação virtual das pessoas com personagens fictícios. Afinal, narrativas fictícias podem propor realidades tão convincentes que são capazes de diluir as barreiras entre o real e a fantasia.
Mas isso não significa que está perdida a noção humana de distinguir o que é verdade e o que não é. Transtornos de personalidade e percepção da realidade se tornarão males mais comuns nos próximos anos, mas viver em várias camadas simultâneas ainda é uma escolha. Encontrar uma nova forma de olhar para o cotidiano é uma chance de viver outras possibilidades de uma mesma situação, o que torna a ficção capaz de revelar o que temos de mais profundamente humano e sensível.
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