Passarelas da não-linearidade

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A rua evidencia como está desgastada a ideia de que uma tendência de moda vem sempre de cima para baixo — da elite para o popular

por Julia Oliveira

Assim como os antigos tutoriais de etiqueta, a seção de “certo e errado” de uma revista de moda não faz mais sentido. Nos últimos anos, a moda tem estado menos engessada por mandamentos das passarelas, enquanto a voz das ruas tem ganhado indiscutível relevância.

A mentalidade não-linear típica da contemporaneidade contamina também a moda e implode os padrões tradicionais de referência. A glorificação das fashion weeks como lançadoras absolutas de tendências cai por terra quando todos parecem beber da mesma fonte de inspiração. A rua se torna tão influente quanto a passarela, mudando a ideia de que tendências são unidirecionais e classistas.

Essa dinâmica fica clara no blog “O que o povão usa” que, de modo bem humorado e provocativo, compara roupas usadas no cotidiano de pessoas comuns a looks de passarelas. Quem teria inspirado quem? O idealizador do blog, Douglas Carlos, responde:

“Falei como pude da classe C, que sempre foi excluída pelos ultrapassados ditadores da moda.”

Quem inspira quem?

Clara evidência deste movimento é o fenômeno dos blogs de streetstyle, que explodiram na segunda metade dos anos 2000, permitindo que o #lookdodia de anônimos virasse referência de estilo. Democrático, o formato passou a influenciar uma legião de seguidores. As marcas mais espertas souberam se aproveitar deste movimento, criando parcerias com blogueiras que figuravam em desfiles e até assinavam coleções. Foi o ápice das it girls.

A blogueira francesa Betty Autier, que lançou uma coleção com a Lancaster.
A blogueira francesa Betty Autier, que lançou uma coleção com a Lancaster.

Hoje, no entanto, são raras as blogueiras que continuam influentes. Muitas caíram no lugar comum que apresenta um visão parcial e bastante tendenciosa do que é a moda. Algumas transformaram seus blogs em instrumentos de exibicionismo, ostentando roupas distantes da realidade da maioria dos leitores. Nessa dinâmica, o que surge como curiosidade de conhecer novos estilos termina em afastamento. Ou em um de humor Smart Trolling.

Plataformas como e Lookbook ganham força como referência, uma vez que pulverizam as fontes e abrem espaço para o que está fora do radar das grandes publicações. O Tumblr, inclusive, tem convidado seus principais usuários para fazer a cobertura oficial de eventos como a semana de moda de Nova York. São novos olhares em relação à moda, disseminados entre um público desacostumado a consumir as tradicionais revistas do segmento.

A moda segundo iconoclastas

A moda está tão cansada dela mesma que as criações mais interessantes têm partido de artistas que não são originalmente estilistas. São iconoclastas da cultura atual que mantém um forte vínculo com sua própria identidade estética.

MIA Versus Versace

A cantora M.I.A. criou uma coleção em parceria com a Versus Versace, lançada simultaneamente a seu álbum “Matangi”. Outro de seus mais recentes clipes, Y.A.L.A., também teve ligação com a moda, com styling assinado pela Kenzo.

Kanye West se juntou à Adidas para lançar uma linha de roupas masculinas em parceria com a marca parisiense A.P.C. Composta por camisetas, moletons e jeans minimalistas, a coleção esgotou em questão de horas depois de lançada oficialmente no site da marca.

Em fevereiro de 2014, Solange foi diretora artística de uma linha da Puma chamada “Girls Of Blaze Disc Collection”, selecionando estilistas promissores que tivessem cacife para reinventar um ícone da marca, o tênis Disc Blaze.

Campanha da linha “Girls Of Blaze Disc Collection”

As fontes são outras

É necessário, no entanto, ponderar sobre a apropriação do estilo street. Quando há excesso de produção em um styling inspirado na rua, torna-se difícil comunicar despretensão — característica que geralmente se espera das ruas.

O capítulo sucessor dessa história é o surgimento de uma contra-tendência que valoriza o conforto e o minimalismo que o streetstyle nem sempre supre. são conceitos derivados da ressaca do excesso, ressignificando o valor das “roupas de ficar em casa”, antes ignoradas e até debochadas pela moda.

Crocs em editorial da revista Transmission

A abordagem mais honesta e crua da revista Transmission deu margem para que uma sandália Crocs aparecesse em um editorial de moda. Parece piada um dos símbolos de suicídio fashion ser tratado com status de ícone, mas é justamente esse o ponto: perdeu-se o medo de ser considerado fora de moda.

Marc Jacobs colocou uma pitada de pé no chão com o casting de uma de suas campanhas, selecionado pelo Instagram.
Marc Jacobs colocou uma pitada de pé no chão com uma de suas campanhas: o casting foi selecionado pelo Instagram.
Na temporada italiana de Verão 2013, a Dolce & Gabbana fez um desfile em que homens comuns da Sicília — padeiros, pescadores, motoristas — substituíram organicamente os modelos usuais. A marca tratou o ordinário como raro, reatando laços com suas raízes patrióticas: ser italiano basta para ser lindo.
Políticos, executivos e cientistas bem sucedidos foram os protagonistas de uma recente campanha da Louis Vuitton. Modelos podem ter beleza e riqueza, mas os verdadeiros visionários são gênios das ciências e dos negócios, que tem aparência comum e valores que vão muito além do superficial.
Políticos, executivos e cientistas bem sucedidos foram os protagonistas de uma recente campanha da Louis Vuitton. Modelos podem ter beleza e riqueza, mas os verdadeiros visionários são gênios das ciências e dos negócios, que tem aparência comum e valores que vão muito além do superficial.

Quando os recursos parecem estar se esgotando em si mesmos, vale a pena lembrar o conceito básico de que as roupas servem às pessoas, e não o contrário.

A ideia de que uma tendência vem sempre de cima para baixo — da elite para o popular — está desgastada.

Assim como a sociedade evolui ao passo que acompanha as sinuosidades da rua, a moda também se reinventa seguindo essas novas referências. Hoje, as inspirações transitam fluidas e podem estar em qualquer lugar: o molde é a inexistência de um molde.

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A mentalidade não-linear típica da contemporaneidade contamina também a moda e implode os padrões tradicionais de referência. A glorificação das fashion weeks como lançadoras absolutas de tendências cai por terra quando todos parecem beber da mesma fonte de inspiração. A rua se torna tão influente quanto a passarela, mudando a ideia de que tendências são unidirecionais e classistas.

A moda está tão cansada dela mesma que as criações mais interessantes têm partido de artistas que não são originalmente estilistas. São iconoclastas da cultura atual que mantém um forte vínculo com sua própria identidade estética.

Quando os recursos parecem estar se esgotando em si mesmos, vale a pena lembrar o conceito básico de que as roupas servem às pessoas, e não o contrário. A ideia de que uma tendência vem sempre de cima para baixo — da elite para o popular — está desgastada. Assim como a sociedade evolui ao passo que acompanha as sinuosidades da rua, a moda também se reinventa seguindo essas novas referências. Hoje, as inspirações transitam fluidas e podem estar em qualquer lugar: o molde é a inexistência de um molde.

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Vá Além

Renovando o guarda-roupa sem gastar nada

O clothing swap já era comum em alguns países, mas foi o Projeto Gaveta, idealizado por Giovanna Nader e Raquel Vitti Lino que trouxe essa prática para o Brasil. Participando desse projeto é possível renovar o guarda-roupa inteiro sem gastar nada. Esse sistema horizontal desafia o mercado, pois estimula que as pessoas não comprem e se relacionem com as roupas de maneira mais sustentável.

Nova safra de estilistas redefine o luxo em Paris

A notória moda francesa parecia inabalável, mas passa por um período de renovação. Alguns desfiles da semana de moda de Paris de 2014 mostram referências comuns ao cotidiano dos cidadãos ordinários, mas não usuais para a tradição francesa, como pijamas, roupas esportivas e moda jovem da década de 1990.

Estilistas migram para a Internet

É comum hoje a migração de estilistas do mercado tradicional para a venda pela Internet, em que o lançamento não é por temporada, mas de acordo com a demanda do mercado ou segundo o fluxo natural da criação. Isso torna a moda mais flexível, mais próxima da realidade cotidiana.

A Louis Vuitton e o “homem de Davos”

Em campanha, a Louis Vuitton substituiu modelos convencionais por aqueles que representam a nova cara do poder. Isso foi motivado pela vontade da marca em mudar sua imagem, resgatar sua história e criar laços duradouros com os clientes que garantem a contínua existência das icônicas malas de couro.

Vinte anos de tendências das ruas

O fotógrafo Hans Eijkelboom tirou retratos da moda de rua durante os últimos vinte anos, de um modo bem menos romantizado do que se costuma ver em blogs de street style. As fotografias foram agrupadas de acordo com tendências espontâneas e anti-fashion, como usar patins sem camiseta, regatas pink com jeans e capuzes peludos.

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