Efemeridade como fuga da eterna memória digital
Vivemos um tempo em que tudo é passível de registro. Temos controle sobre todos os dados que cercam nossas vidas: pulseiras tecnológicas contam os quilômetros percorridos, apps contabilizam as calorias consumidas, o Instagram reflete as boas experiências vividas e o Foursquare registra os lugares visitados. Cada lembrança pode ser clicada e acessada a qualquer momento. Trackability mode on.
Com a Internet, ficou quase impossível não deixar pegadas digitais, que podem permanecer eternas se não forem configuradas para o contrário. As pessoas acostumaram-se a contar com a certeza de que estes rastros do passado estarão sempre lá, prontos para serem sacados. Ser um stalker deixa de ser exclusividade dos esquisitões e passa a ser comportamento padrão — ainda que em segredo para alguns.
Neste contexto de superexposição, é crescente o contramovimento que vê a impermanência como medida para proteger a privacidade. E a busca por ela é latente.
Não é à toa que o aplicativo Telegram tenha sido um dos mais baixados de 2014. Muito parecido com o Whatsapp, o app oferece o serviço de troca de mensagens, porém permitindo que as mensagens desapareçam depois de um determinado período de tempo — a mesma lógica por trás do Snapchat. Além disso, o Telegram envia mensagens criptografadas e possibilita a criação de “secret chats” com seus contatos, com a promessa de não deixar vestígios dos dados nos servidores da empresa.
O recado é o simples: quando tudo é passageiro, a memória pessoal torna-se o único backup. Só perdura o que realmente importa. A informação com curto prazo de validade se torna uma poderosa ferramenta de comunicação, e seu valor é exatamente a evanescência.
Nesse cenário, há uma revalorização do presente e sua capacidade de se desintegrar. Câmeras analógicas como a Fujifilm Instax nunca fizeram tanto sentido: viraram febre entre um público nostálgico por aquilo que nunca viveu.
Fora do ambiente digital a efemeridade também prospera. Eventos antes encarados com os olhos dramáticos da eternidade passam a ser guiados pela espontaneidade: diploma não amarra mais ninguém a somente um trabalho; aparências e estilos mudam de acordo com a vontade ou a ocasião; casamentos têm início, meio e fim. A fugacidade não é uma vilã, é só uma forma de compreender a vida.
Arte efêmera + culto à privacidade = hot stuff
A leve subversão em simplesmente não querer ser encontrado é um comportamento que reflete a ressaca da cultura mobile. Quando a falta passa a ser entendida como uma condição humana, é natural que seja valorizado tudo aquilo que é limitado, escasso, raro.
Neste contexto que engrandece tudo que não dura para sempre, obras de arte se reinventam e colocam em xeque a questão do colecionismo. Como preservar um produto que não existe? Nos anos 1960, Yves Klein foi precursor deste pensamento vanguardista ao vender obras invisíveis. Recentemente, o artista Tino Sehgal vendeu um trabalho à Tate Gallery que consiste em um sussurro no ouvido do curador, contendo as instruções sobre a obra. A ideia integra o acervo do museu de maneira tanto imaterial quanto efêmera: se o curador eventualmente deixar seu cargo, terá de repassar o sussurro para outro profissional.
Na música, diversos artistas têm evitado a superexposição de suas figuras, e nem por isso deixam de conquistar grandes audiências. A cantora Sia, por exemplo, prefere se apresentar de costas para o público, colocando sua música em primeiro plano. Apesar de uma parcela do público considerar a atitude uma afronta carregada de desrespeito, é notável a preocupação da cantora em proteger sua carreira dos malefícios da fama. Afinal, o histórico da cultura das celebridades vem ensinando há décadas que superexposição é sinônimo de transtornos e infelicidades, vide as biografias conturbadas de astros como Michael Jackson, Lindsay Lohan ou Justin Bieber. O que Sia elucida é que a ideia de “fama” ganhou novas nuances no mundo contemporâneo.
Outros músicos e bandas também estão optando pela discrição da autoimagem. Gazelle Twin combina seus experimentalismos sonoros com o mistério de não revelar o rosto. A dupla Rhye só faz shows à meia-luz, impossibilitando que suas identidades sejam reveladas, atitude que os permite “sentir muito mais humildes e fieis à música”. No Brasil, o mascarado Desampa vem chamando atenção com suas gravações regadas a mistério, beleza e melancolia.
Até a literatura está manifestando apreço pelo efêmero. O livro “Private Vegas”, de James Patterson, foi lançado com uma campanha imersiva que deu vida ao clima de ficção criminosa da história. A versão digital da obra só existiu por 24 horas, período que atraiu mil leitores ao site do projeto. Uma cópia física do livro — envolta por explosivos com um timer — foi entregue a um empenhado leitor durante um jantar com o próprio autor.
Por bem ou por mal, o fácil acesso à memória faz com que ela se banalize. É revolucionário ter tantas informações na mão a qualquer momento, mas o jogo muda de figura quando os dados dizem respeito à própria intimidade. Quando tudo pode ser trackeado, camuflar-se passa a ser um desejo coletivo que torna valioso qualquer exercício de efemeridade. Que seja eterno enquanto dure.
Vivemos um tempo em que tudo é passível de registro. Com a Internet, ficou quase impossível não deixar pegadas digitais, que podem permanecer eternas se não forem configuradas para o contrário. Neste contexto de super-exposição, é crescente o contra-movimento que vê a impermanência como medida para proteger a privacidade. E a busca por ela é latente.
O recado é o simples: quando tudo é passageiro, a memória pessoal torna-se o único backup. Só perdura o que realmente importa. A informação com curto prazo de validade se torna uma poderosa ferramenta de comunicação, e seu valor é exatamente a evanescência. Nesse cenário, há uma revalorização do presente e sua capacidade de se desintegrar.
Fora do ambiente digital a efemeridade também prospera. Eventos antes encarados com os olhos dramáticos da eternidade passam a ser guiados pela espontaneidade. Mas a fugacidade não é uma vilã, é só uma forma de compreender a vida.
Por bem ou por mal, o fácil acesso à memória faz com que ela se banalize. É revolucionário ter tantas informações na mão a qualquer momento, mas o jogo muda de figura quando os dados dizem respeito à própria intimidade. Quando tudo pode ser trackeado, camuflar-se passa a ser um desejo coletivo que torna valioso qualquer exercício de efemeridade. Que seja eterno enquanto dure.
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